sábado, 16 de abril de 2011

“Flores Partidas” e “Estranhos no Paraíso”, de Jim Jarmusch: o tédio como poesia no cinema


Bill Murray como Don Johnston
em Flores Partidas

O primeiro filme do diretor norte-americano Jim Jarmusch ao qual assisti, há muitos anos, foi Estranhos no Paraíso (Stranger than Paradise, no original - 1984). Nele, um novaiorquino enfastiado, interpretado com naturalidade exemplar pelo músico John Lurie (que, no fundo, faz o papel de si mesmo), recebe uma prima, Eva, que vem da Hungria e se hospeda em seu apartamento. A chegada da moça a Nova York é uma das mais inspiradas sequências do cinema de Jarmusch: com suas malas e um ar fleumático, ela caminha pela cidade. Como faz Luis Buñuel em Paris com Catherine Deneuve em A Bela da Tarde (Belle de Jour - 1967), o caminhar de Eva é o pretexto do diretor para filmar Nova York no que ela tem de mais inóspito e, paradoxalmente, acolhedor, na belíssima sequência que parece ter sido filmada no Brooklyn, um contraponto evidente a visões mais chiques da megalópole, como a de Woody Allen, cujo olhar se volta para o lado de Manhattan.

O não-acontecer, o tédio do trio de vagabundos formado por Willie (John Lurie), Eva (Eszter Balint) e Eddie (Richard Edson) e sua vagabundagem inconseqüente e inofensiva, a poesia e a força da música blues/rock’n’roll que pontua a atmosfera, o preto e branco do filme reforçando a impressão do tédio que a tudo domina, mas nem por isso deixa de ter humor, isso é Stranger than Paradise.

Flores Partidas

Embora muito menos inspirado do que Estranhos no Paraíso, o penúltimo filme de Jarmusch, Flores Partidas (Broken Flowers, de 2005), é dominado por esse clima non sense. Mas por que esse non sense de Jarmusch, cuja matéria prima é o tédio, encanta? Porque seus filmes revelam o absurdo e a banalidade que perpassam nosso cotidiano. Um cotidiano sem culpa.

Em Flores Partidas, o cinqüentão Don Johnston (interpretado por Bill Murray) é abandonado pela namorada e em seguida recebe uma carta anônima informando-lhe que tem um filho de 19 anos, que ele nem imagina ter. Ele recebe aquela notícia com aparente indiferença e vai à casa do vizinho e amigo Winston (Jeffrey Wright), cujo hobby é estudar e “resolver” casos policiais.

O amigo o convence a fazer uma viagem de carro pelos Estados Unidos para visitar suas ex-namoradas e tentar descobrir se alguma delas é a mãe do filho perdido. O ar tedioso e absurdamente fleumático de Don tem tudo para se dissipar, agora que o filme se transforma num road movie, mas nada muda. Nem o encontro com as ex-mulheres, entre as quais Sharon Stone no papel de Laura, com a qual ele vai para a cama, é capaz de colorir um pouco o ar blasé, o tédio invencível do protagonista, que de tão persistente vira humor. Os acontecimentos na vida desse personagem estranho se sucedem, e nada o entusiasma nem decepciona.

O filme termina como começa. O encontro casual (em Jarmusch, o acaso é sempre presente) de Don com um rapaz chegando à cidade, que pode ou não ser seu filho perdido (loucura ou realidade?), é impagável.

Por tudo isso, vale a pena alugar ou comprar Flores Partidas, se você não é um psicodependente de filmes de suspense, tiros, morte e sexo.

Jarmusch é uma típica criatura do Brooklyn, e não por acaso seus filmes são habitados por esses loucos e criativos habitantes do bairro, como o próprio John Lurie e Tom Waits. O escritor Paul Auster e o ator Harvey Keitel são outros dos amigos de Jarmusch com quem ele divide ideias e estéticas e obras.

Jim Jarmusch é também diretor de outros filmes importantes, como Daunbailó (1986), Uma Noite sobre a Terra (1991) e Ghost Dog (1999). Mas sua obra prima é Dead Man (1995), com um elenco inusitado e interessante formado por Johnny Depp, Robert Mitchum (já velho), Iggy Pop e John Hurt. Mas este filme merecerá um post à parte.

Atualizado à 00:01

Sinopses:

Estranhos no Paraíso (Stranger than Paradise)
Lançamento: 1984 (Alemanha, EUA)
Direção: Jim Jarmusch
Elenco: John Lurie, Eszter Balint, Richard Edson

Flores Partidas (Broken Flowers)
Lançamento: 2005 (França, EUA)
Direção: Jim Jarmusch
Elenco: Bill Murray, Jeffrey Wright, Sharon Stone, Jessica Lange
Duração: 105 min

Abaixo, os trailers de Estranhos no Paraíso e Flores Partidas

De Estranhos no Paraíso, por incrível que pareça, só achei um link com a sequência de Eva (Eszter Balint) chegando à cidade legendado em japonês.



Flores Partidas:

2 comentários:

Mayra disse...

O Mário de Andrade num ensaio sobre Machado de Assis diz que há os autores a quem a gente ama - como Castro Alves e Álvares de Azevedo - e há outros, como o bruxo carioca, geniais, mas a quem a gente não ama, basicamente porque nos primeiros há um amor cheio de compaixão pela espécie e isso nos toca especialmente. Acho que o Jarmusch é do primeiro tipo, por isso a gente gosta tanto dele. Tem também esse olhar de uma geração, a nossa, cujos 20 anos foram na década de 80 - um tempo existencial onde o "tédio" tinha um sentido histórico forte no mundo ocidental, de pós-pós a iluminada e explosiva década de 60, com a subsequente e arrastante década de 70. Nesse sentido, os 80 foram uma década meio “estranha” mesmo pra nossa juventude: havia uma certa liberdade de costumes já devidamente conquistada, mas não havia muito o que fazer com isso num mundo que se preparava pra receber uma das maiores pestes – pelo menos no que isso implicou pro comportamento/costumes – da história (AIDS). Enfim, acho que é por isso também, não só, que a gente gosta tanto desse cara: ele soube traduzir um olhar de uma época não só com ironia, mas com carinho também.

Edu Maretti disse...


Muito bom seu comentário. Engraçado que, enquanto escrevia, eu pensei que outra característica marcante dos filmes de Jarmusch é a ironia. E acabei não abordando isso.

Essa contextualização histórica tem muito a ver com os filmes de Jarmusch, pelo menos os da primeira safra, como Estranhos no Paraíso, Daunbailó e outros.

Depois acho que ele se liberta dessa atmosfera de anos 80, com filmes como Dead Man e Ghost Dog.