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quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O Brasil de 2016: o país do golpe, do desencanto e da barbárie





Alguns amigos não entendem muito bem minha desesperança com a política e com o Brasil. A questão é que esse desencanto não tem a ver apenas com política, mas com o nível moral (espiritual) em que está ancorado este país, este povo, e não apenas a chamada classe dominante, as "elites" - "não há vítimas inocentes" (Sartre). Tenho amigos que desprezam a religiosidade, outros que dela zombam, mas outros alimentam as coisas do Espírito.

Para ilustrar o que quero dizer, repito o que disse no Facebook: A selvageria assassina materializada no metrô de SP esta semana (quando o vendedor Luiz Carlos Ruas, de 54 anos, foi assassinado por dois monstros por defender travestis agredidas por esses mesmos monstros) só mostra algo que tenho pensado e falado para as pessoas mais próximas: o Brasil é um lixo de país.

Eu sou espírita. Tenho amigos católicos e de religiões afro. Principalmente entre os católicos, há entre eles quem tenha sido barbaramente torturado durante a ditadura iniciada em 1964. Depois de décadas de luta pela democracia, vimos o que aconteceu em 2016: um golpe sórdido, mas no entanto tão fácil como tirar pirulito da boca de uma criança.

Esse trágico desenlace (que pode fazer o país retroceder décadas do pouco avanço que conseguiu depois de séculos de exploração feudal) mostrou quão pusilânime é o chamado "povo" brasileiro. Perdoem-me, mas, de certa maneira, os monstros assassinos do metrô são como que a cara moralmente radicalizada desse mesmo povo. Claro, só psicopatas como os assassinos do metrô teriam coragem de protagonizar a barbárie, mas muitos e muitos a apoiam. Sim, apoiam. Basta ler comentários em sites e redes sociais.

Vejo esse povo nas ruas, no supermercado, na padaria. Ou vocês acreditam que esse povo vai sair às ruas, às centenas de milhares, defender... a democracia, os direitos do cidadão e do trabalhador?!

***

Estou terminando de ler um livro sobre o qual já escrevi neste blog, Os Cátaros e a Heresia Católica, de Hermínio C. Miranda . É uma abordagem historiográfica (sob um ponto de vista espírita) muito interessante sobre os cátaros, um povo que tentou implementar no mundo (a partir da Europa, particularmente no sul da França), entre os séculos 12 e 13 de nossa era, o cristianismo do Cristo, e que foi sufocado e eliminado brutalmente pela Igreja Católica de Roma.

Os cátaros, considerados hereges pela Santa Sé, foram perseguidos pelas Cruzadas e pela Inquisição implacavelmente, humilhados e queimados vivos em fogueiras enormes em nome de... Cristo!, eles que pretenderam justamente defender as ideias trazidas pelo próprio Jesus. Morreram queimados como morreram apedrejados e crucificados e nas arenas romanas os primeiros cristãos, no início.

Digo isso como uma livre-associação.

Encerro dizendo: depois de tudo o que aconteceu politicamente em 2016, notícias como a desse crime bárbaro no metrô de SP apenas reforçam que este país é isso mesmo, um lixo. Desculpem a sinceridade. Mas, se fosse possível, eu gostaria de fazer um acordo com Deus: que na próxima encarnação me permita nascer em outro lugar. Neste aqui não acredito mais.

Cada vez mais acredito que só há uma solução: a transformação interior, a partir da qual se pode espraiar a transformação do mundo. Como ensinaram entidades como Jesus, Buda, Mahatma Gandhi e outros.


quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Simone de Beauvoir





Hoje, Simone de Beauvoir (1908-1986) faria 106 anos. Muitas jovens feministas de hoje, que consideram revolucionário, que acham demais fazer manifestações de nudismo para reafirmar sua independência, o que só reproduz uma visão de mundo hedonista sem nenhum conteúdo relevante, provavelmente desconhecem que essa francesa que nasceu e morreu em Paris publicou, em 1949, O Segundo Sexo, o primeiro ensaio importante que discutiu filosoficamente a condição da mulher na civilização contemporânea e mais tarde inspirou e em parte embasou o movimento feminista.

Para não ficar, aqui, numa análise superficial de obra tão vasta, tão complexa e tão importante, para não repetir os velhos chavões de sua relação com Jean-Paul Sartre, e também porque eu não teria nada mais bonito a dizer, reproduzo abaixo trechos de um belíssimo texto da nossa grande Lygia Fagundes Telles no livro de crônicas (memória e ficção) Aquele Estranho Chá, em que Lygia narra um encontro seu com a fundamental escritora francesa.

Ela, de traços delicados que ainda guardavam uma discreta beleza da juventude, cabeça pequena de aristocrata, corpo atarracado de camponesa. Mãos fortes e olhar tão intenso que recuei um pouco quando ela firmou o olhar em mim e começou com suas perguntas sobre a condição da mulher no Brasil. Essas perguntas prosseguiram nos contatos seguintes que tivemos, era inesgotável sua curiosidade. Interessou-se muito pela ditadura de Vargas, como os jovens reagiram? E como o país, ou melhor, como a mentalidade brasileira interferiu no processo da minha profissão de escritora?”

(...)

"Fomos almoçar num bistrô do bairro, era outono e a folhagem das grandes árvores estava esbraseada. Achei-a mais magra. Mais envelhecida no casaco de couro e botas da cor da folhagem. Voltou aos seus temas preferidos, o movimento feminista. Política. Literatura. E de repente, a pergunta incisiva: “Você tem medo de envelhecer?” Comecei a ramificar nas minhas curvas mas ela queria a linha reta. Tocou com firmeza na minha mão: “Então está com medo.” Não pude deixar de sorrir: ali estava a pensadora tão lúcida, tão racionalista, a ensaísta que esgotara tão terrivelmente num alentado ensaio todo o problema da velhice [referência ao livro A Velhice – 1970] e ainda preocupada com a idade da decadência, vulnerável como uma dona de casa que se procura no espelho e se assusta. Num dos seus belos romances, a personagem em plena l’âge de discrétion também se encolhera como um coelho: “Tenho medo. E não posso chamar ninguém para me socorrer. Tenho medo.” Fiquei olhando o vinho vermelho no copo transparente. O pão dourado na cesta.

“Setenta anos? Setenta anos. Em toda sua obra ausente de Deus, a mesma preocupação constante com a fragilidade da condição humana, a mesma marca da insegurança, do medo. O antigo espanto diante da velhice e da finitude e a busca desesperada de uma resposta que pudesse romper o mistério. Evidente sua obsessão – comum a todo artista – de permanência, de duração. E a tranqüila filosofia estruturada na certeza de que a imortalidade seria a morte da vida. Só a idéia da morte, última chave da última porta – só essa idéia, apesar de tudo, torna nossa existência mais feliz.”

(Lygia Fagundes Telles, em Aquele Estranho Chá)



Homenagem do Google a Simone, neste 9/01/2014

Obras de Simone de Beauvoir


A convidada (1943)
Pyrrhus e Cinéas (1944)
O sangue dos outros (1945)
As Bocas Inúteis (1945)
Todos os homens são mortais (1946)
Por uma Moral da Ambigüidade (1947)
A América dia a dia (1948)
O segundo sexo (1949)
Os mandarins (1954)
Privilèges (1955)
A Longa Marcha (1957)
Memórias de uma moça bem-comportada (1958)
Na Força da Idade (1960)
A força das coisas (1963)
Uma Morte Muito Suave (1964)
As Belas Imagens (1966)
A Mulher Desiludida (1967)
A velhice (1970)
Tudo dito e feito (1972)
Quando o Espiritual Domina (1979)
A cerimônia do adeus (1981)

Leia também:



quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Lembrando Pasolini a partir da excrescência Big Brother Brasil


*Publicado originalmente às 14:18 de 07/02/11



Em 1973, o cineasta e pensador italiano Pier Paolo Pasolini fazia o seguinte comentário sobre a televisão e seu papel culturalmente desagregador e brutalmente destrutivo, analisando a massificação e a padronização da Cultura (e das culturas particulares, seus falares, dialetos e idiossincrasias):

"A responsabilidade da televisão em tudo isso é enorme. Não enquanto meio ‘técnico’, mas enquanto instrumento de poder e poder ela própria. (...) É no espírito da televisão que se manifesta concretamente o espírito do novo poder. (...) O fascismo, no fundo, não foi capaz nem de arranhar a alma do povo italiano: o novo fascismo, através dos novos meios de comunicação e informação (especialmente a televisão) não só a arranhou, mas a dilacerou, violentou, contaminou para sempre." (do livro Os Jovens Infelizes – Antologia de Ensaios Corsários, Editora Brasiliense, 1990.)

Quem leu Pasolini – o grande cineasta diretor de Mamma Roma, Accattone, Salò – os 120 Dias de Sodoma e tantos outros – fica para sempre contaminado por uma irrevogável visão crítica da Cultura, pelo inconformismo e a incapacidade de assistir a certas coisas sem indignar-se.

É com um sentimento de repulsa que escrevo sobre o asqueroso Big Brother Brasil (vulgo BBB), da TV Globo, programa pervertido, boçal e pernicioso ao qual jamais assisti. Dia desses entrei numa padaria para tomar um lanche e eis que a televisão do estabelecimento estava ligada nessa excrescência. Como eu estava morto de fome e a padaria era a única por perto, comi o lanche de costas para a TV. Ao sair, disse à moça responsável pelas “comandas” que da próxima vez que fosse ali nem entraria se a TV estivesse ligada no programa. Ela me olhou em silêncio, com um ar desdenhoso, como se o idiota fosse eu, e não disse nada.

Como temia Pasolini em relação à sua amada Itália, em nosso país a televisão – uma concessão pública, lembremos – transformou a esmagadora maioria dos brasileiros numa massa amorfa, acrítica e incapaz de julgar por si mesma (por favor, não falo de conjunturas meramente eleitorais), incapaz muito menos de preservar sua cultura e suas tradições, as culturas particulares, a criatividade, os falares. Não sei se o próprio Pasolini podia imaginar o quão baixo a televisão chegaria.

E não venham me dizer que o povo é apenas uma vítima. Como dizia Jean-Paul Sartre, “não há vítimas inocentes”.

Leia também: Favoritos do cinema (5): Pasolini

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Os caminhos da liberdade de Jean-Paul Sartre [3] – Com a morte na alma



Com a Morte na Alma é o último volume da trilogia Os Caminhos da Liberdade. A guerra é realidade, Paris é ocupada pelos nazistas, e a consciência dos personagens construídos a partir do inaugural A Idade da Razão, que nas páginas de Sursis torna-se gradativamente a consciência conflituosa e multifacetada da própria Europa, desemboca na amarga realidade de um país, a orgulhosa França, vencido.

Os personagens são levados, pela magnitude dos fatos que os superam, a entender que a História é mais forte do que as idéias de liberdade burguesa de cada indivíduo. Diante da Guerra, há como que uma suspensão dos princípios individuais, queiram ou não os personagens aceitar esse estado de coisas. Os egos se dissipam. A Europa se fragmenta. A França cai. A história sombria e sem saída toma conta das consciências e das ruas abandonadas:

Ninguém no Bulevar St.-Germain; rua Danton, ninguém. Nem mesmo as portas de ferro estavam abaixadas, os mostruários brilhavam: tinham simplesmente tirado o trinco das portas ao partirem. Era domingo. Era domingo há três dias; em Paris agora havia um só dia em toda a semana. Um domingo como outro qualquer, um pouco mais vazio que de costume, um pouco mais químico, silencioso demais, já cheio de podridões secretas (...) Longas esteiras brancas sujavam os vidros das vitrines. Daniel pensou: ‘os vidros choram’ Atrás dos vidros era uma festa: milhões de moscas zumbiam.”

Diante dessa realidade inóspita, na alma e nos bulevares, em que não há futuro, o protagonista Mathieu Delarue, que nos volumes anteriores da trilogia sufocava diante de uma liberdade vã (o homem está condenado à liberdade) está agora na linha de frente, como combatente. É a consciência da liberdade.

Por meio de um ato gratuito de sacrifício, o homem ilusoriamente pode achar que é livre. O ato de matar um nazista pode ter a aparência de um ato de liberdade, de redenção, mas não o é. É a História, maior do que qualquer consciência, que o engole.


Leia também:

Os caminhos da liberdade de Jean-Paul Sartre [1] – A idade da razão

Os caminhos da liberdade [2] – Sursis

Sartre resiste ao século

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Os caminhos da liberdade de Jean-Paul Sartre [2] – Sursis


A bela edição do Círculo do Livro
Tinha eu meus 20, 21 anos, quando li Sursis, o segundo livro da trilogia  Os Caminhos da Liberdade, de Jean-Paul Sartre. Nunca tinha lido Sartre e não me preocupei com o fato de A Idade da Razão ser a primeira obra da trilogia (nem lembro se sabia disso).

Só depois (quando somos jovens não temos a preocupação com o passar do tempo e a ordem das coisas muitas vezes nos é indiferente) é que fui ler os romances pela ordem, até chegar à terceira parte, Com a Morte na Alma. E só depois ainda li uma frase do filósofo e romancista francês: “eu sou os livros que li”, uma sentença bem francesa, diga-se, mas que me calou fundo, pois eu poderia dizer que não seria exatamente o que sou se não tivesse mergulhado nessa profundíssima discussão em torno do espírito humano (particularmente europeu) que Sartre constrói com sua trilogia.

O ambiente, em Sursis, não é mais apenas contaminado pelos sinais longínquos da guerra: a Segunda Guerra Mundial já é iminente na tensão crescente do romance, não apenas na narrativa e diálogos, mas na própria estrutura e no encadeamento do texto. As ideias, diálogos e a consciência mesma dos personagens muitas vezes se misturam num mesmo período, às vezes na mesma frase, como se a consciência europeia da conflagração fosse se materializando paulatina e implacavelmente na mente não do professor Mathieu, de sua amante Marcelle, da jovem Ivich, mas de todos eles, como se eles fossem sendo possuídos por uma consciência maior, a consciência da Europa.

Sursis é, em termos de linguagem, o mais complexo romance da trilogia, talvez o melhor. No livro, Sartre escreve uma das mais belas passagens sobre a ilusão do homem do século XX, a ilusão do homem que, terminada a Primeira Guerra, achou que tinha conquistado a paz: “Anos e anos de paz futura se haviam depositado previamente nas coisas (…) pegar o relógio, um trinco de porta, a mão de uma mulher, era tomar a paz nas mãos. O após guerra era um começo. O começo da paz (…) O jazz era um começo, e o cinema (…) E o surrealismo. E o comunismo. O tempo, a paz, eram a mesma coisa. Agora esse futuro está aqui, a meus pés, morto (…) Olhava os vinte anos que vivera serenos (…) e os via agora como tinham sido: um número finito de dias comprimidos entre dois altos muros sem esperança (…) que figuraria nos manuais de história sob a denominação de ‘Entre duas guerras`”.

É com um estranho fervor, como diria Borges, que alguns livros persistem em nossa memória. Sursis, do mestre Sartre, para mim, é um deles. Um livro que, além de tudo, me provoca uma estranha sensação de atualidade. Espero que não estejamos hoje todos nós vivendo uma grande ilusão como a dos personagens da Europa do entre-guerras de Sursis.

Leia também:

Os caminhos da liberdade de Jean-Paul Sartre [1] – A idade da razão

Sartre resiste ao século

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Os caminhos da liberdade de Jean-Paul Sartre [1] – A idade da razão


Reprodução
Primeiro romance da trilogia Os caminhos da liberdade, o romance A idade da razão (1945) foi concebido na tensa Europa do pré-Segunda Guerra Mundial, quando as tensões e conflitos de interesses econômico-políticos e a ascensão do nazismo já faziam pairar sobre o continente as sinistras sombras da conflagração mundial.

Nesse ambiente em que a individualidade se esfumaçava, o romance, corajosamente, e traduzindo para a linguagem da ficção os preceitos da filosofia existencialista, faz prevalecerem os conflitos individuais e os problemas de consciência de pessoas comuns: o professor de filosofia Mathieu Delarue (alter-ego do próprio Jean-Paul Sartre) busca uma moral livre do modo de ser burguês e cristão (ou burguês e cartesiano, já que no livro a tensão se fragmenta entre os personagens como uma psique da própria França enquanto nação). Em Sartre, os conflitos individuais não ultrapassam a história. Os egos se espedaçam junto com a história da Europa, em particular a França, conflagrada.

Por meio de uma consciência rigorosa e crítica, porém impotente, Mathieu vive atormentado pela angústia e pela idéia de fracasso. Sua amante Marcelle convive com a paixão platônica de Mathieu pela aluna Ivich.

O homossexual Daniel, personagem considerado por alguns uma citação de André Gide, procura a liberdade anárquica no ato gratuito.

E a liberdade, para o personagem Brunet, não existe individualmente, mas apenas através do engajamento político (de esquerda).

Jacques é o homem cuja verdade consiste no casamento e numa vida “estável”. Cada um dos personagens exercita, na medida em que faz uso do livre-arbítrio, o conceito filosófico segundo o qual “o homem está condenado à liberdade”.

À maneira de Flaubert, todos os personagens de A Idade da razão são pequeno-burgueses medíocres. Ou, talvez, melhor dizendo, não-heróis.

A trilogia continua com Sursis (a obra-prima dos três livros) e Com a morte na alma. Em outra ocasião falarei dessas obras.

Leia também: Sartre resiste ao século.

domingo, 17 de junho de 2012

Sartre resiste ao século XXI


Jean-Paul Sartre nasceu em 21 de junho de 1905 e morreu em 15 de abril de 1980. Alguns dizem que o século XX foi “o século de Sartre”. Outros pensam diferente: nos anos de dissipação moral, política e social em que vivemos neste século XXI, é natural que o filósofo, escritor e dramaturgo esteja fora de moda. A avaliação de um pensador fundamental como ele, segundo um conceito tão simplista (estar ou não na moda), é bem própria de um tempo em que tanto os objetos nas prateleiras como a mente, os corpos e as paixões humanas são descartáveis. Mas Sartre continua sendo essencial.


Parafraseando a fala de Paulo Francis sobre Regis Debray e Bernard Henri-Lévy: quando se considera que gente como Jean Baudrillard é levada a sério, “dá saudades de Camus e Sartre, com todas as suas incoerências e contradições”. De fato, o pensador francês Baudrillard era, nos primeiros anos do século XXI, o protótipo do modismo intelectual, apesar de, nascido em 1929, ser apenas 24 anos mais velho do que o autor de A Idade da Razão. Em entrevista à revista Época (o semanário de Roberto Marinho) em 2003, o filósofo da moda Baudrillard dizia, pernóstico: “Sou um dissidente da verdade. Não creio na idéia de discurso de verdade, de uma realidade única e inquestionável (...). Procuro refletir por caminhos oblíquos. Lanço mão de fragmentos, não de textos unificados por uma lógica rigorosa (...) Para simplificar, examino a vida que acontece no momento, como um fotógrafo”.

Ora, é bastante coerente a opção pela dissidência da verdade num mundo comandado pelo mercado, pela fragmentação e pelo individualismo; nesse contexto, é cômoda e cínica a dissimulação, e a reflexão “por caminhos oblíquos”. É confortável a escolha pela fragmentação num momento histórico que se constrói em nome mesmo do fragmento. A premissa por trás do discurso de Baudrillard é o não-comprometimento, a falta de fé (entendida como conceito filosófico, e não religioso). Pode-se, segundo essa premissa, mudar de idéia sem culpa como se troca de carro ou camiseta, pode-se fazer orações fervorosas no altar do deus Fragmento sem medo das contradições, pois o que se diz hoje se desdiz amanhã: não há verdade. Se não há verdade, todas são admissíveis. Pode-se, para usar um termo do existencialismo francês, não escolher.


Mas Baudrillard já está morto, tanto física (faleceu em 2007) quanto filosoficamente (pois não passou de uma efêmera moda).

Caetano usou frase de Sartre na Tropicália
Voltemos a Sartre. Jean-Paul Sartre defendeu sua Idéia, mesmo admitindo-se suas contradições. Seduziu e influenciou intelectualmente muitos daqueles que buscavam o conhecimento e a contestação a partir dos anos 40 e ao longo de toda a segunda metade do século XX, passando pelos anos 60, por maio de 68, e deixando marcas indeléveis em movimentos como o Tropicalismo, como reconheceu Caetano Veloso e Tom Zé. Uma das mais conhecidas canções tropicalistas, Alegria, Alegria, diz no célebre verso: “Sem lenço sem documento/nada no bolso ou nas mãos”. É uma citação. Em As Palavras, Sartre escreve: "O que eu amo em minha loucura é que ela me protegeu, desde o primeiro dia, contra as seduções da elite: nunca me julguei feliz proprietário de um talento: minha única preocupação era salvar-me – nada nas mãos, nada nos bolsos – pelo trabalho e pela fé". Claro: fé, aqui, não é a fé religiosa.

É muito conhecida a máxima sartreana segundo a qual “o homem está condenado à liberdade”. Ao justificar filosoficamente que a existência precede a essência, ele esclarece o que seria essa condenação a ser livre: “O existencialismo ateu (...) Declara (...) que, se Deus não existe, há pelo menos um ser no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana (...) Mas se verdadeiramente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que é. Assim, o primeiro esforço do existencialismo é o de pôr todo homem no domínio do que ele é e de lhe atribuir a total responsabilidade pela sua existência. E (...) não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens."

Principal expoente do Existencialismo francês juntamente com Albert Camus, e influenciado por Martin Heidegger e Husserl, Sartre chegou ao cume de seus escritos propriamente filosóficos com o hermético O Ser e o Nada (1943). No campo do embate filosófico, atacou (em Questão de Método) e foi violentamente atacado pelo marxista Georg Lukács (em Existencialismo ou marxismo?), para quem o existencialismo francês era uma filosofia niilista pequeno-burguesa.

Porém, humanista e ateu, valendo-se da verdade existencialista segundo a qual “o homem está condenado à liberdade” (o que pressupõe a escolha), Sartre posicionou-se, como militante, ao lado de causas que julgou corretas em nome desse humanismo, o que, para ele, e segundo muitos equivocadamente, justificava sua simpatia pelo regime de Fidel Castro ou por Mao Tsé Tung.

Mas é com sua obra literária de ficção e teatro – permeada, obviamente, pelos conceitos filosóficos – que Sartre atingiu o grande público (a mim, inclusive) e alastrou sua influência. Seu primeiro romance, A Náusea (1938), introduz no gênero romance alguns dos conceitos filosóficos do Existencialismo. O protagonista Antoine Roquentin é um historiador que escreve a biografia de um excêntrico personagem do século XVIII, o marquês de Rollebon. Roquentin vive assolado pela melancolia e seu único interlocutor é um bizarro homem denominado Autodidata.

É na trilogia Os caminhos da liberdade que o autor consolida sua carreira de romancista. O primeiro volume, A Idade da Razão (1945), é ambientado na tensa Europa pré-Segunda Guerra Mundial. Nesse contexto em que a individualidade se esfumaçava, o romance traduz para a ficção alguns preceitos da filosofia existencialista: o professor de filosofia Mathieu Delarue, protagnista principal (na trilogia, há vários protagonistas cujas consciências como que se fundem numa espécie de consciência da Europa), busca uma moral livre do modo de ser burguês e cristão. Com uma visão de mundo rigorosa e crítica, vive imerso na angústia e atormentado pela idéia de fracasso.

Se a trilogia é inteira uma obra-prima, o auge da concentração e da forma sartreanas se dá no segundo volume, Sursis (1945), cuja trama se desenvolve na Europa à beira da conflagração. Numa das mais belas páginas da literatura européia do século XX, lemos a seguinte reflexão sobre o engodo que havia sido a paz do entre-guerras, amarga constatação de um continente que outra vez já respira a morte: “Anos e anos de paz futura se haviam depositado previamente nas coisas (…) pegar o relógio, um trinco de porta, a mão de uma mulher, era tomar a paz nas mãos. O após guerra era um começo. O começo da paz (…) O jazz era um começo, e o cinema (…) E o surrealismo. E o comunismo. O tempo, a paz, eram a mesma coisa. Agora esse futuro está aqui, a meus pés, morto (…) Olhava os vinte anos que vivera serenos (…) e os via agora como tinham sido: um número finito de dias comprimidos entre dois altos muros sem esperança (…) que figuraria nos manuais de história sob a denominação de ‘Entre duas guerras`”.

Sartre e Simone de Beauvoir
Com A morte na alma (1949), título muito sintomático, encerra-se a trilogia Os caminhos da Liberdade. A vida de Sartre chega ao fim em 15 de abril de 1980. Em A cerimônia do adeus (1981), livro de memórias no qual descreve o fim do escritor, sua companheira Simone de Beauvoir, no mais característico estilo existencialista, escreve ao mesmo tempo emocionada e implacável: “Sua morte nos separa. Minha morte não nos reunirá. Assim é: já é belo que nossas vidas tenham podido harmonizar-se por tanto tempo”.

Texto originalmente escrito para a revista Fórum em junho de 2005,
por ocasião dos 100 anos do nascimento e 25 anos da morte de Jean-Paul Sartre



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