quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O Brasil de 2016: o país do golpe, do desencanto e da barbárie





Alguns amigos não entendem muito bem minha desesperança com a política e com o Brasil. A questão é que esse desencanto não tem a ver apenas com política, mas com o nível moral (espiritual) em que está ancorado este país, este povo, e não apenas a chamada classe dominante, as "elites" - "não há vítimas inocentes" (Sartre). Tenho amigos que desprezam a religiosidade, outros que dela zombam, mas outros alimentam as coisas do Espírito.

Para ilustrar o que quero dizer, repito o que disse no Facebook: A selvageria assassina materializada no metrô de SP esta semana (quando o vendedor Luiz Carlos Ruas, de 54 anos, foi assassinado por dois monstros por defender travestis agredidas por esses mesmos monstros) só mostra algo que tenho pensado e falado para as pessoas mais próximas: o Brasil é um lixo de país.

Eu sou espírita. Tenho amigos católicos e de religiões afro. Principalmente entre os católicos, há entre eles quem tenha sido barbaramente torturado durante a ditadura iniciada em 1964. Depois de décadas de luta pela democracia, vimos o que aconteceu em 2016: um golpe sórdido, mas no entanto tão fácil como tirar pirulito da boca de uma criança.

Esse trágico desenlace (que pode fazer o país retroceder décadas do pouco avanço que conseguiu depois de séculos de exploração feudal) mostrou quão pusilânime é o chamado "povo" brasileiro. Perdoem-me, mas, de certa maneira, os monstros assassinos do metrô são como que a cara moralmente radicalizada desse mesmo povo. Claro, só psicopatas como os assassinos do metrô teriam coragem de protagonizar a barbárie, mas muitos e muitos a apoiam. Sim, apoiam. Basta ler comentários em sites e redes sociais.

Vejo esse povo nas ruas, no supermercado, na padaria. Ou vocês acreditam que esse povo vai sair às ruas, às centenas de milhares, defender... a democracia, os direitos do cidadão e do trabalhador?!

***

Estou terminando de ler um livro sobre o qual já escrevi neste blog, Os Cátaros e a Heresia Católica, de Hermínio C. Miranda . É uma abordagem historiográfica (sob um ponto de vista espírita) muito interessante sobre os cátaros, um povo que tentou implementar no mundo (a partir da Europa, particularmente no sul da França), entre os séculos 12 e 13 de nossa era, o cristianismo do Cristo, e que foi sufocado e eliminado brutalmente pela Igreja Católica de Roma.

Os cátaros, considerados hereges pela Santa Sé, foram perseguidos pelas Cruzadas e pela Inquisição implacavelmente, humilhados e queimados vivos em fogueiras enormes em nome de... Cristo!, eles que pretenderam justamente defender as ideias trazidas pelo próprio Jesus. Morreram queimados como morreram apedrejados e crucificados e nas arenas romanas os primeiros cristãos, no início.

Digo isso como uma livre-associação.

Encerro dizendo: depois de tudo o que aconteceu politicamente em 2016, notícias como a desse crime bárbaro no metrô de SP apenas reforçam que este país é isso mesmo, um lixo. Desculpem a sinceridade. Mas, se fosse possível, eu gostaria de fazer um acordo com Deus: que na próxima encarnação me permita nascer em outro lugar. Neste aqui não acredito mais.

Cada vez mais acredito que só há uma solução: a transformação interior, a partir da qual se pode espraiar a transformação do mundo. Como ensinaram entidades como Jesus, Buda, Mahatma Gandhi e outros.


sábado, 24 de dezembro de 2016

O Natal, segundo Carlos Drummond de Andrade




Organiza o Natal*

Carlos Drummond de Andrade


Marc Chagall, Solitude (1933) - Óleo sobre tela

Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.

Ah! Seria ótimo se os sonhos do poeta se transformassem em realidade.

*Texto extraído do livro "Cadeira de Balanço", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 52.

Ainda sobre religiosidade:

Pensata sobre Maria Madalena a partir de uma notícia

Os cátaros, a política, o espiritismo

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Duas passagens que tive com Dom Paulo Evaristo Arns


Reprodução/Youtube


Não vou repetir dados e informações biográficas sobre dom  Paulo Evaristo Arns, que foram divulgadas à exaustão hoje (ontem).

Quero apenas contar duas passagens de minha vida em que tive a honra de, mesmo que rapidamente, trocar algumas palavras com esse grande homem.

Uma foi em 2000, no dia da eleição que levou Marta Suplicy à prefeitura de São Paulo. Chegávamos à PUC-SP, para votar. Quando passávamos pela entrada da universidade, à rua Monte Alegre, um carro parou e dele desceu dom Paulo Evaristo Arns. Surpresos com a feliz coincidência (mas dizem que coincidências não existem) dirigimo-nos a ele, dizendo algo como "veio votar, Dom Paulo?", só para ter algo o que ouvir dele.

Com o olhar carismático e expressivo, e o falar calmo característico dos homens que têm todas as coisas para dizer, e, sabedores disso, sempre falam sem pressa, ele fixou os olhos nos olhos da Carmem e disse: "chegou a hora das mulheres", com um sorriso convicto e alegre.

A outra ocasião foi ainda antes, cerca de um ano depois da eleição de Luiza Erundina (1988). Era um evento no Tuca, o teatro da PUC de tantas histórias, e eu, jornalista ainda muito jovem, me candidatei a fazer uma pergunta ao arcebispo. Lembro que, diante daquela sumidade que tanto e sempre respeitei, ao dirigir-me para pegar o microfone eu tremia. A insegurança de jovem  jornalista cresceu enormemente naquele momento, naquela situação. É que a gente se sente pequeno às vezes, quando está diante de alguém espiritualmente poderoso como ele.

Minha pergunta foi o que ele podia comentar sobre o papel decisivo da Igreja, a qual ele comandava em São Paulo como arcebispo, na eleição de Erundina. (No dia da eleição, a Folha de S. Paulo dera uma matéria de página inteira, sob o título: "Igreja libera fiéis para voto em Erundina" -- cito o título de memória, que pode ser diferente em algum detalhe, mas era esse essencialmente. Não há dúvida de que Dom Paulo foi decisivo naquela eleição.)

Hoje, 27 anos depois, não me lembro nem mesmo qual foi exatamente a resposta de Dom Paulo. Mas foi uma resposta política, como se dissesse que o que tinha de ser feito já fora feito.

Enfim, dom Paulo Evaristo Arns, aos 95 anos, terminou sua missão. Uma grande missão, cumprida com honra, serenidade e disposição para ajudar a melhorar o mundo. 

sábado, 3 de dezembro de 2016

Interestelar: ficção inteligente, apesar de Hollywood



Anne Hathaway: cenas espetaculares, atuação medíocre

Sou apaixonado por filmes de ficção científica. Infelizmente, são poucos os que se salvam. Dos que vi, 2001: Uma Odisseia no Espaço (direção de Stanley Kubrick de 1968 - baseado no livro de Arthur Clarke), é o melhor. Não à toa, já que Kubrick é um gênio que soube usar as benesses de Hollywood para fazer uma obra definitiva no cinema. Blade Runner (Ridley Scott - 1982) é outro. E podemos pôr um etcétera aí.

Mas quero falar, brevemente, do filme Interestelar (no original, Interstellar), de 2014, dirigido pelo obscuro Christopher Nolan, o tipo de diretor que não faz diferença, já que, se não fosse ele, outro faria a mesma coisa -- mais ou menos melhor ou pior.

Mas o filme, como resultado, é interessante e inteligente, descontando os hollywoodianismos (a tendência ao happy end, a necessidade do vilão, da luta física etc.).

Interestelar traz à ficção científica no cinema abordagens que a ciência dominante, a ciência canônica, não considerava comprováveis há apenas algumas décadas, como o buraco de minhoca, que em inglês é wormhole (este termo, na legenda do canal HBO, não é traduzido - o termo inglês worm significa mais "verme" do que "minhoca"). O buraco de minhoca continua sendo uma teoria contestada, mas já é considerada mais do que mera teoria. Outro conceito abordado pelo filme é o do buraco negro.

De fato emociona a maneira como o filme mostra o passado como uma dimensão irrecuperável, inclusive considerando Albert Einstein e sua Teoria da Relatividade. Não há na física a possibilidade de você mudar o passado. O filme Interestelar joga fora abordagens tolas como a do filme De Volta para o Futuro (filme fascinante, mas tolo, do ponto de vista da Física). 

Interestelar é um filme antropocêntrico, como a visão do cientista Marcelo Gleiser, por exemplo. Ou seja, incorpora a concepção de que o ser humano é a única entidade comprovadamente (mas comprovada pelo homem) inteligente do cosmos e está destinado a povoar o universo. É  uma tese hoje contestada. Há setores na Ciência que discordam de que o ser humano seja o único inteligente no cosmos. O problema é que não há provas de que não estamos sós. Mas há muitas indicações de que está prestes a ser comprovado que não, nós não somos os únicos: o ceticismo de Marcelo Gleiser está ultrapassado.

Para finalizar, a produção de Interestelar resolveu muito mal o papel da astronauta dra. Brand, interpretada pela péssima Anne Hathaway, que mais parece uma coelhinha da Playboy do que uma cientista ou uma astronauta. Mesmo assim, ela protagoniza cenas espetaculares, como quando a missão da Nasa chega a um planeta estranho coberto por água, e os astronautas são surpreendidos por... Mas não vou contar.

Já o galã Matthew McConaughey, como o astronauta Cooper, foi uma aposta vencedora. Está muito bem no papel do comandante da missão destinada a encontrar um destino para a espécie humana para além de nossa galáxia. De resto, o desempenho de Jessica Chastain (no papel de Murph como filha adulta de Cooper) é muito superior ao da medíocre Anne Hathaway como a protagonista dra. Brand. No filme, o excelente Michael Caine faz o pai da dra. Brand.

Infelizmente, como é Hollywood, os pecados se sucedem. Por exemplo: o filme tem um elenco estelar, com o perdão do trocadilho. Além de Michael Caine, traz como coadjuvante Matt Damon, uma real estrela da nova geração de Hollywood (junto, por exemplo, com Leonardo DiCaprio). Um luxo, ter Matt Damon como coadjuvante. Só que, ao invés de aproveitar o personagem de Matt Damon, a produção-direção, na minha modesta opinião, desperdiça a chance. Porque Hollywood precisa de heróis e vilões, precisa do bem e do mal, e jogam fora o luxo de ter o ator em seu elenco.

Seja como for, Interestelar é um filme bastante interessante. Merece ser visto. Assista.

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Leia mais: Um pouco mais sobre Interestelar