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sábado, 24 de dezembro de 2016

O Natal, segundo Carlos Drummond de Andrade




Organiza o Natal*

Carlos Drummond de Andrade


Marc Chagall, Solitude (1933) - Óleo sobre tela

Alguém observou que cada vez mais o ano se compõe de 10 meses; imperfeitamente embora, o resto é Natal. É possível que, com o tempo, essa divisão se inverta: 10 meses de Natal e 2 meses de ano vulgarmente dito. E não parece absurdo imaginar que, pelo desenvolvimento da linha, e pela melhoria do homem, o ano inteiro se converta em Natal, abolindo-se a era civil, com suas obrigações enfadonhas ou malignas. Será bom.

Então nos amaremos e nos desejaremos felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas. Governo e oposição, neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em regime de fraternidade. Os objetos se impregnarão de espírito natalino, e veremos o desenho animado, reino da crueldade, transposto para o reino do amor: a máquina de lavar roupa abraçada ao flamboyant, núpcias da flauta e do ovo, a betoneira com o sagüi ou com o vestido de baile. E o supra-realismo, justificado espiritualmente, será uma chave para o mundo.

Completado o ciclo histórico, os bens serão repartidos por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem pretensão, celebrando o Advento.

A poesia escrita se identificará com o perfume das moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros? perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol e das galáxias, aberta à maneira de um livro.

A música permanecerá a mesma, tal qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão arquivados, sem humilhação para ninguém.

Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz.

O trabalho deixará de ser imposição para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo estará conciliado na ordem do amor.

Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível.

A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a existência da noite, como já compreendera a da manhã.

O mundo será administrado exclusivamente pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições caducas, a Universidade inclusive.

E será Natal para sempre.

Ah! Seria ótimo se os sonhos do poeta se transformassem em realidade.

*Texto extraído do livro "Cadeira de Balanço", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 52.

Ainda sobre religiosidade:

Pensata sobre Maria Madalena a partir de uma notícia

Os cátaros, a política, o espiritismo

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Pensata sobre Maria Madalena a partir
de uma notícia



Fragmento de papiro supostamente do século II
traz a frase: "Jesus disse a eles: minha mulher..."


Pouco menos de dois anos atrás li o excelente Os Manuscritos do Mar Morto, livro do americano Edmund Wilson (1895-1972). Ele trata de uma incrível descoberta feita por acaso em 1947 por uma tribo de beduínos, pastores de cabras, na margem ocidental do Mar Morto: os manuscritos de Qumram, uma série de textos enrolados dentro de jarros de argila datados de aproximadamente 2 mil anos, que estavam escondidos em cavernas.

Eram centenas de textos e fragmentos de textos bíblicos que comprovaram a existência de uma seita de ascetas judeus, a seita dos essênios, que viveram em Qumran do século II a.C. até aproximadamente 70 d.C., quando os romanos tomaram Jerusalém.

A partir desse achado nas margens do Mar Morto, Roland Guérin de Vaux (1903-1971), padre dominicano francês, diretor da Escola Bíblica, uma instituição acadêmica, católica e francesa dedicada a estudos teológicos, e Gerald Lankester Harding (1901-1979), arqueólogo britânico, dedicaram-se a explorações e pesquisas que acabaram culminando com a descoberta das ruínas do mosteiro onde esses ascetas viviam, perto de onde se acharam os manuscritos pelos beduínos: “O que eles desenterraram é espantoso: um antiquíssimo edifício de pedra, contendo de vinte a trinta aposentos, 13 cisternas e grande parte de seu equipamento intacta. A um lado, entre o edifício e o mar, existe um cemitério com mais de mil túmulos. A construção tem o aspecto de um mosteiro, e uma série de elementos não apenas sugere como prova de maneira praticamente inquestionável que se trata de uma das moradas – senão a sede – do que no passado era conhecido como a seita dos essênios”.

Fílon de Alexandria (que viveu aproximadamente entre 20 a.C. e 50 d.C.) e o judeu Flavio Josefo (37 - 100 d.C) foram os primeiros a falar sobre os essênios, que viviam segundo costumes rigorosos, tendo se afastado do judaísmo tradicional. A descoberta gerou discussões que persistem até hoje sobre o Jesus histórico e o Jesus do cristianismo que começou a se propagar no mundo a partir do primeiro século de nossa era.

Bem, sou um ignorante no assunto. Mas, lendo o livro de Wilson e, mais recentemente, uma obra homônima (Os Manuscritos do Mar Morto, do biblista francês André Paul), mesmo para mim que sou leigo, fica a impressão (por indícios, não provas concretas) de que muita coisa se apagou da história por interferência do que depois veio a ser a Igreja Católica. Com o perdão da heresia, mas, parafraseando Shakespeare, há mais mistérios entre a história e nós do que possa supor nossa vã filosofia. No segundo livro acima citado, Paul escreve: “Jesus de Nazaré começou a manifestar-se na Judeia, perto do Jordão e não longe da margem norte do Mar Morto. Frequentou uma fraternidade de ascetas onde se impunha um profeta de nome João, o qual administrava o batismo a todo judeu que o quisesse. Nessa época, a comunidade de Qumram era ainda viva e dinâmica. Ninguém sabe nem saberá com rigor se Jesus a frequentou”.

Escrevo isso como digressão, sem pretender chegar a uma conclusão, afinal nem os historiadores e arqueólogos chegaram. Mas a pensata me ocorreu a partir da notícia de hoje (terça, 18 de setembro/2012) de que foi achado um pequeno fragmento de papiro supostamente do século II, escrito em copta (língua falada no Egito na época de Jesus), em que estaria escrita a frase "Jesus disse a eles: minha mulher..." A informação é baseada em estudo da Universidade de Harvard, conforme revelou a professora Karen King. O pergaminho teria sido achado no Egito ou na Síria.

O que é mais interessante disso tudo – e independentemente de se crer ou não, ser religioso ou não – é que o caminhar da história tende a desmistificar muitas coisas, e revelar outras. Nesse sentido, a história (e todas as outras ciências que com ela caminham paralelamente) é uma ciência apaixonante.

Uma revelação que já parece cristalina é que Maria Madalena (ou Maria de Magdala) foi muito mais do que a igreja de Pedro permitiu que fosse contado.