sábado, 31 de janeiro de 2015

O MPL e sua "tática binária"



Movimento Passe Livre/Agência Brasil


“Por que o MPL e o Sindicato dos Metroviários preferem o Anhangabaú, ao lado da prefeitura de São Paulo, comandada por Fernando Haddad? (Pergunta ainda a responder.)”

Falei isso num post neste blog em 14 de agosto de 2013, sobre um dia em que havia convocação para duas manifestações em São Paulo: uma no Anhangabaú (do lado da prefeitura) e outra na Assembleia Legislativa (onde ficam os deputados estaduais, pra quem não sabe). Adivinhem onde estava o protesto do MPL? Do lado da prefeitura, claro.

Bom, agora é Lino Bocchini que aborda o tema em ótimo texto na CartaCapital de hoje (31) -- link abaixo.

No texto, ele lembra que, em 2015, O MPL realizou seis protestos. Desses, três “começaram ou terminaram na sede do poder público municipal --o prédio do Banespinha, no Viaduto do Chá, no Centro de São Paulo. O último deles, dia 29, passou pelo prédio no qual mora a família de Haddad”, lembra a matéria da CartaCapital.

Lembra ainda um fato político que o MPL insiste em ignorar em suas manifestações: “O governo do Estado, há mais de 20 anos nas mãos do PSDB, é o responsável pelo metrô, pelos trens da CPTM, por linhas de ônibus intermunicipais”.

Ressaltando que em uma democracia protestar é um direito constitucional, Bocchini constata: “Chamam atenção, entretanto, as escolhas do movimento. Geraldo Alckmin agradece”.

É curioso notar as reações quando você resolve minimamente questionar essa espécie de senso comum pró-MPL. Escrevi uma pequena reflexão sobre isso no Facebook, em tom jocoso, e logo um amigo jovem (mas não tão jovem quanto a massa adolescente que forma o MPL) veio com essa resposta irritada (ipsis litteris): “Pq vc não vai a um ato pelo menos uma vez? Talvez descubra na rua mais sobre estes ‘inhos’, ‘inhas’ e sobre democracia, a democracia paulistana”.

Sintomático isso: os que defendem o direito absoluto de protestar não conseguem conviver muito bem com questionamentos. Não vou nem falar dos meus questionamentos, mas cito uma observação do próprio Fernando Haddad, em entrevista recente ao DCM em que critica a “postura do MPL, sobretudo de pessoas que têm uma bagagem para entender o que é a intolerância. A intolerância não é de esquerda. É um fundamentalismo que eu lamento”.

Diz ainda Haddad sobre o MPL: “É possível ampliar os direitos gradualmente. Sem radicalizar. Mas a tática deles é claramente binária: ou levo tudo ou não levo nada. Ou você me dá 100% do que estou pedindo ou você é meu inimigo”.

É isso, amigos. Fiquem com a íntegra das matérias citadas:

Da CartaCapital: MPL mira em Haddad e alivia para Alckmin

A entrevista de Haddad ao DCM: Fernando Haddad fala sobre Marta, Chalita, a lógica do MPL

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Pensamento para sexta-feira [55]
O mosquito drone


Admirável mundo novo

Reprodução

  
Margo Seltzer, professora de ciência da computação na Universidade de Harvard, esteve na semana passada no Fórum Econômico de Davos, na Suíça. Vários sites pelo planeta repercutiram a fala de Seltzer sobre um mundo em que drones-mosquito como esse da foto poderiam, em tese, voar ao redor de você e sugar o seu sangue, mais especificamente seu DNA. Essa notícia não é muito nova, em 2012 ela já circulava. Ou mesmo antes.

“Bem-vindo ao presente. Nós já estamos nesse mundo”, disse a professora novaiorquina.

O pernilongo-drone é um vampiro cibernético.

A notícia sobre essa tecnologia assustadora me remeteu a um poema do nosso poeta maior, Carlos Drummond de Andrade. Na verdade, a um trecho de seu poema “O Sobrevivente”:

Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.

Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura. Mas até lá, felizmente, estarei morto.”

quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

De tênis e mitos



Divulgação
Djoko e Sharapova, sensacionais


Umas linhas sobre tênis, já que o Australian Open está rolando.

Comecei a gostar de tênis vendo jogos do antológico duelo entre Pete Sampras e Andre Agassi, no início dos anos 1990.

De lá para cá, muita coisa aconteceu, sendo um divisor de águas o auge de nosso Gustavo Kuerten, o Guga, no ano de 2000.

Hoje, torço para Novak Djokovic*, apesar de ficar dividido quando ele enfrenta Roger Federer, o jogador mais completo e mais elegante que já vi, mas hoje em decadência (porém, o tenista mais espetacular para mim foi o fabuloso Sampras, com seu saque-e-voleio, a potência e a categoria inigualáveis).

Fala-se muito em Wawrinka e Berdych, que jogam o estilo porrada, que não me agrada. O britânico Andy Murray é um jogador de muito mais recursos, extremamente técnico, mas às vezes instável. Não sei por quê, tenho uma antipatia invencível por Murray.

Nos últimos anos construiu-se uma espécie de dicotomia entre Federer e Rafael Nadal. Não gosto de dicotomias, mas sempre achei Nadal um tenista intolerável, embora reconheça que é um gigante, como já escrevi em outro post. Me irritam até o extremo o estilo pitbull do espanhol, sua força física incrível, a inclemência com que chega em todas as bolas, o fôlego impressionante, o estilo Lleyton Hewitt de jogar tênis (comparação limitada, embora razoável). Além de tudo isso, Nadal tem aqueles tiques nervosos ao sacar: puxa a cueca, arruma o cabelo de um lado, de outro, bate a bola incontáveis vezes...

Roger Federer é o maior colecionador de títulos de Grand Slams, com 17 troféus. Atrás dele vêm Pete Sampras e o próprio Nadal, com 14 cada. Torço muito para Nadal não superar Federer. Djoko tem 7 Grand Slams, e no ritmo em que vem jogando tende a no mínimo se aproximar cada vez mais de Nadal e Federer.**

Jamais esquecerei da incrível vitória do, então, imberbe Roger Federer contra o mítico Sampras em Wimbledon, em 2001. O suíço, com 20 anos, batia seu maior ídolo na lendária quadra central do All England Lawn Tennis Club pelas oitavas de final, lugar onde o norte-americano era rei. Após o jogo, o incrédulo jovem suíço, que viria a superar o ídolo em títulos, caiu de joelhos e chorou.

Sem me alongar muito, no feminino sou fã da Maria Sharapova, para quem sempre torço, a carismática russa que apareceu espetacularmente para o mundo ao bater a impressionante Serena Williams na final de Wimbledon (sempre Wimbledon) de 2004 por 2 sets a 0 (6-1,6-4).

A russa Maria é uma das poucas tenistas que venceram o Grand Slam de carreira, ou seja, conquistou os quatro maiores torneios do mundo: Wimbledon em 2004, Aberto dos EUA em 2006, Aberto da Austrália em 2008 e Roland-Garros em 2012 e 2014. Não é pouca coisa.

Sharapova tem um problema que Guga também tinha. Ambos jogam gritando, o que às vezes perturba quem está vendo.

Mas Serena, a irmã mais nova de Venus, às vezes me parece tão forte que chega a parecer injusto, em certo jogos, ela enfrentar uma mulher, tamanha é a desproporção, a potência de seus golpes, que, aliados à inteligência e seus recursos técnicos impressionantes, fazem dela uma adversária quase imbatível, quando está bem física e psicologicamente.

Nenhuma das duas, Serena ou Sharapova, porém, se compara à grande alemã Steffi Graf, a melhor de todas entre as que vi jogar. Como também já escrevi, nunca vou esquecer a maravilhosa final de Roland Garros de 1999, quando Steffi destruiu a suíça Martina Hings de tal maneira que Martina terminou a partida em meio a um crise nervosa e entre lágrimas.

Entre as mulheres, a australiana Margaret Court foi a que mais ganhou Grand Slams, com nada menos do que 24 títulos. Steffi Graff tem 22. Serena Williams, junto com Chris Evert e Martina Navratilova, tem 18, logo atrás de Wills Moody, com 19. Sharapova tem 5 Grand Slams.

PS: Este post foi escrito antes do término do Australian Open de 2015, vencido por Djokovic na final contra o britânico Andy Murray, o qual o sérvio esmagou por 3 sets a 1, parciais de 7-6 (5), 6-7 (6), 6-3 e 6-0. Djoko conta agora, portanto, com 8 Grand Slams.

* Ao escrever este post em janeiro de 2015, disse que "hoje, torço para Novak Djokovic, apesar de ficar dividido quando ele enfrenta Roger Federer". Um ano depois, refaço a frase para dizer: como sempre fui muito fã, e, mais do que isso, admirador de Federer, fiquei um pouco cansado de tanto ver Federer perder de Djoko, e em todos os confrontos entre ambos de um ano para cá, torço sempre para Federer.

** De janeiro de 2015 a janeiro de 2016, Federer se mantém como maior vencedor de Grand Slams, com 17 troféus. Sampras continua logo atrás, junto com Nadal (que não ganhou nada em 2015), com 14. Djoko, que tinha 7 títulos ano passado, já tem 10. Em 2015, só não levou Roland Garros (que ficou com Wawrinka). O sérvio ganhou na Austrália, em Wimbledon e nos Estados Unidos.


quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Aracaju, a capital que acorda ao cair da noite



Clique para ampliar
Praia do Atalaia


Texto e fotos por Roseli Costa

Aracaju, que significa “cajueiro dos papagaios”, é a junção de duas outras palavras: arara e caju, símbolos da capital de Sergipe, o menor estado brasileiro. A cidade acorda às 5 da tarde, quando começa a ser abraçada pela noite (é, lá anoitece cedo!). Antes disso, tem-se impressão de que teremos pouco a conhecer, a não ser a belíssima Orla de Atalaia, de 30 km de extensão, que entorna a cidade, com areal longo, diferente de todas as praias, mar verde e calmo, restaurantes, praças e lagos. Mas não é o que ocorre.

A partir desse horário, descortina-se a paradoxal beleza delicada e agreste do local. Passeios pela orla não bastam, pois há que se conhecer as feiras de artesanato riquíssimas, o oceanário, o Centro de Arte Sergipana e os vários passeios que se apresentam como opção, adornados por montanhas, rios, lagoas, dunas, manguezais, caatinga e pantanal.


Orla do do Atalaia

Um bom exemplo de passeio fora da orla é a Croa de Goré, pequena ilha que submerge diariamente com a alta da maré e nos mantém repentinamente com os pés dentro de água cristalina. No caminho desta, há a Ilha dos Namorados, com seus contornos de areia fina rodeada por água límpida. Também se deve conhecer a Praia do Saco, tida como a mais bela de Sergipe. Ressaltem-se as cidades históricas de Laranjeiras e São Cristóvão, com conjunto arquitetônico dos séculos XVI, XVII e XVIII, composto de ladeiras de pedra, casarões e igrejas inesquecíveis. Encontra-se também, como opção de lazer mais longínqua, o Canyon de Xingó, nascido do represamento do Rio São Francisco para a construção da Usina Hidrelétrica do Xingó, em 1994, na divisa de Sergipe e Alagoas, que com suas águas verdes e montanhas parcialmente submersas compõe maravilhoso e único espetáculo.


Croa do Goré

Quando se retorna dos passeios múltiplos que lá se pode fazer, não agradam menos as voltas pela orla bem projetada para o lazer e a convivência, tanto de dia quanto à noite, entre ciclistas, caminhantes, crianças, idosos, todos contemplados com bancos coloridos de alvenaria, comidas típicas da melhor qualidade, ciclovias, parques, profusão de lagos, pedalinhos, quadras de esportes, pistas de skate, monumentos que exaltam a raiz nordestina, trenzinhos, artesãos, cantadores de viola e de flauta, doceiros e restaurantes de todos os tipos. Por isso mesmo é aconselhável não fazer todos os passeios oferecidos e deixar de conhecer cada cantinho da cidade. É preferível visitar Aracaju mais de uma vez ou ficar mais que uma semana para dar conta de tanta beleza.

Depois de dois dias na cidade, acostuma-se a todo dia comer tapioca, tomar sorvete desse mesmo típico ingrediente; também o de castanha e o de caju, todos muito apreciados. Também se habitua na capital de Sergipe à brisa refrescante num frequente calor de 25 a 35 graus.


Ilha dos Namorados

Saindo da orla e adentrando Aracaju, temos bairros de casas simples com grandes quintais, algumas ruas de terra, que pouco lembram uma capital. E mais adiante, o centro histórico, com algumas construções antigas, shoppings, centro financeiro, o imenso Rio Sergipe, bem como o grande e marcante mercado sertanejo, alegria dos habitantes locais e dos turistas, já que nele pode-se encontrar de tudo, com forte marca sertaneja.

Aracaju não é o destino principal dos turistas sedentos por pacotes badalados e de grande projeção. Mas a característica da cidade que dorme até 17 horas repete-se nas descobertas de recantos que só os catamarãs, barcos, lanchas e jipes revelam, para compor uma visão mais acertada do que é a cidade das araras, dos cajus e do saboroso sorvete de tapioca.


Centro de Aracaju



sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Fernando Haddad e Gabriel Chalita



Apesar de Fernando Haddad e Gabriel Chalita, novo secretário de Educação, desconversarem sobre os planos deles próprios e de PT e PMDB para as eleições municipais de 2016, e dizerem que essa discussão é para depois, quem foi à concorridíssima cerimônia de posse de Chalita pôde constatar a força e o significado político das articulações que levaram o peemedebista a assumir o posto no governo.

Cesar Ogata/SECOM-PMSP


Além de deputados, vereadores, secretários municipais e líderes de vários escalões dos dois partidos, estiveram presentes à cerimônia figuras como José Renato Nalini (presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo), dom Odilo Scherer (cardeal arcebispo de São Paulo), Alexandre Padilha (ex-ministro da Saúde), Lygia Fagundes Telles (a mais importante escritora brasileira viva), Alexandre de Moraes (secretário de Segurança Pública de Geraldo Alckmin), representantes da OAB e diversas entidades políticas e civis, entre outros.

O evento mostrou que a posse de Chalita – se não houver pedras no caminho – é, sim, o prenúncio de uma possível dobradinha na chapa para a eleição de 2016.

A chegada de Chalita ao governo faz parte da já lendária (!) estratégia que deve neutralizar grande parte do capital que Marta Suplicy teria se, fora do PT, conseguisse se bandear para o PMDB. Agora, se ela quiser ser candidata, terá de ser por um partido muito menor.

Mas ainda tem o fator Russomanno, que não será desprezível como candidatura de direita que tem muitos votos nas periferias da capital.

"Aqueles que buscarem divergência de pontos de vista entre mim e Chalita vão semear em solo infértil", disse Haddad, ao ser questionado sobre críticas murmuradas aqui e ali por petistas e outros inconformados com a nomeação de um ex-secretário de Alckmin.

Haddad lembrou a participação de Chalita nas eleições de 2010 e 2012, pra dizer: “Chalita é parceiro também na política, por que não dizer? Não vejo nenhuma razão para não agradecer mais uma vez o apoio que recebi no segundo turno de 2012, e o esforço que ele fez em 2010 para não permitir que teses obscurantistas dominassem o debate político da eleição presidencial. Elevou o padrão e o nível do debate”.

A lembrança de Haddad é pertinente. Com os 833 mil votos que conseguiu no primeiro turno de 2012, Chalita foi decisivo para a vitória do petista contra José Serra (PSDB). No segundo turno, o então candidato do PT venceu o tucano por uma diferença de 679 mil votos.

Antes, em 2010, Chalita, que é católico, deu declarações defendendo a então candidata Dilma Rousseff dos boatos espalhados pelo mesmo tucano Serra, segundo os quais Dilma era favorável ao aborto. “A tentativa de desconstruir pessoas com boatos é ruim. Dilma nunca disse ser a favor do aborto. Ela abordou o tema como uma questão de saúde pública”, afirmou Chalita na época à Folha de São Paulo, quando era membro do PSB.

Sobre o “boato” mais explorado, o da interferência de Lula no processo, me parece que Haddad demonstra nas entrelinhas que acredita de fato na construção de uma nova geração de políticos, ao dizer: “procuramos o presidente Lula e o presidente Michel Temer para apresentar a eles nosso ponto de vista sobre o rejuvenescimento da política, a necessidade de novos quadros para revitalizar o debate político sobre políticas públicas”.

Com isso, Haddad quer dizer a Lula que está na hora de o Brasil acreditar na nova geração.

sábado, 10 de janeiro de 2015

As tolices em torno do atentado ao Charlie Hebdo


Ou: eu também Não sou Charlie


Após o ato terrorista que vitimou o jornal Charlie Hebdo, naturalmente muitos se apressaram para externar suas opiniões. Depois do horror do ato terrorista justificadamente repudiado por qualquer pessoa que tenha um mínimo apreço ao humanismo, à paz ou ao simples bom senso, logo surgiram as tolices que se seguem a acontecimentos desse tipo.

A primeira tolice foi aquela segundo a qual o atentado agredia a "liberdade de expressão", a "liberdade de imprensa" de todos nós. A segunda, entre as que li (e essa é mais tola de todas), foi aquela que dizia que a “extrema esquerda” tinha sido a verdadeira vítima dos terroristas. E a terceira tolice é essa que se resume no slogan “Je suis Charlie”, que rivaliza com a segunda em ingenuidade, mas vai muito além.

A primeira tolice não é exatamente uma tolice (é tolice apenas quando reproduzida por papagaios que sequer sabem seu sentido), já que, como se sabe, a liberdade de imprensa de que falam é a liberdade das grandes corporações midiáticas ocidentais, cuja cartilha prega a democracia dos patrões, do capitalismo sem freios, da selvageria denuncista praticada, entre nós brasileiros, por exemplo, pela meia dúzia de famílias donas das comunicações, enfim, a liberdade de imprensa da mentira travestida de jornalismo.

A segunda tolice nem sequer merece comentários. Dizer que a extrema esquerda foi a vítima do atentado é de tal ordem tolo que vou poupar o leitor mais inteligente de ler algumas linhas inúteis.

E a terceira tolice, segundo a qual “Je suis Charlie”, rivaliza com a segunda, mas é mais sofisticada, pois remete a uma solidariedade humanista e de certa maneira incorpora subliminarmente o clamor pela liberdade de expressão, ou de imprensa (ocidental).

Percebo que, quando digo “tolice”, na verdade me refiro aos que reproduzem esses raciocínios e não refletem direito sobre o que estão reproduzindo, já que evidentemente aqueles que os criam ou os consensos em torno dos quais esses raciocínios se formam não são exatamente tolos ou desprovidos de intenções. Quando um monte de amigos verdadeiramente bem intencionados dão pra repetir “Je suis Charlie”, “Je suis Charlie”, “Je suis Charlie”, provavelmente nem estão pensando no significado do que dizem. Por exemplo, no fato de que o Charlie Hebdo talvez tenha ido longe demais em sua política editorial de desrespeitar as religiões e a fé.

"O Corão é uma merda", diz Charlie Hebdo: humor?
Mas principalmente não pensam num aspecto que foi muito bem observado pelo blog Descolonizações, do Zuni: “Aqueles que ostentam orgulhosos o slogan Eu sou Charlie se dizem advogar pela liberdade de expressão, porém não questionam o que significa essa liberdade de expressão nem tampouco quem tem direito a essa liberdade. Ninguém se preocupa com a censura à liberdade de expressão religiosa islâmica na França”.

Em resumo, o blog citado chama a atenção para o fato de que o Charlie Hebdo (intencionalmente ou não – nota deste Fatos Etc.) insuflou incessantemente o preconceito e a já denominada “islamofobia”, o racismo e a violência contra a perseguida cultura islâmica, que na Europa, e principalmente na França, aumenta mais e mais, e incentivou também os discursos da extrema direita francesa. Basta se informar um pouco para saber o quanto o Estado francês tem acuado a cultura muçulmana na terra de Napoleão Bonaparte.

Quando o Charlie Hebdo estampa, numa capa, a frase "O Corão é uma merda", está fazendo humor? Não, está desferindo um ataque que nada tem a ver com humor.

Em entrevista à Folha de S. Paulo nesta sexta-feira (9), Marine Le Pen, presidente da Frente Nacional, partido francês de extrema direita, disse: “O islamismo, esse totalitarismo religioso que mata todo dia centenas de inocentes no mundo, declarou guerra ao nosso país. Devemos responder sem fraquejar”.

Esse discurso insidioso quer confundir o islamismo (uma religião monoteísta surgida na Arábia no século VII, tão importante quanto o cristianismo e o judaísmo) com os fundamentalistas que, infelizmente, são talvez os maiores inimigos da religião em nome da qual matam e massacram.

Aproveitando a estupidez e violência canalha dos inimigos autoproclamados mártires de Alá que, na verdade, trabalham para a causa sionista, Marine Le Pen disse mais: “Os franceses, a partir das manifestações espontâneas que emergiram após o atentado, tomaram consciência dessa declaração de guerra”. E ainda: “Diante do terrorismo islâmico, temos que nos defender com todos os meios possíveis. Acredito que nossos compatriotas entendem isso”.

Por tudo isso, embora solidário com todos aqueles ligados ao Charlie Hebdo que sofreram e sofrem com a insanidade do ataque, mas principalmente como defensor da liberdade e autodeterminação dos povos, do Estado da Palestina (e também, como o governo do Brasil, talvez ingenuamente, da convivência pacífica da Palestina com o Estado de Israel), como defensor da paz, declaro que também Não sou Charlie, como o blog acima citado defende, e você pode ler abaixo.



segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

A adolescência segundo J. D. Salinger e John Fante


Um dos prazeres da leitura é a comparação. Comecei o ano lendo 1933 Foi um Ano Ruim, de John Fante, e não houve como não me lembrar de um dos maiores clássicos da literatura norte-americana, O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. Ambos narram, em primeira pessoa, a história de adolescentes.

Adolescentes, como se sabe, são criaturas problemáticas, em transição. Não sabem o que querem ou, se sabem (ou pensam saber), têm certeza absoluta dos objetivos, mesmo que a realidade teime em desmentir seus sonhos. Às vezes têm todas as certezas do mundo. Outras, todas as dúvidas do mundo. Muitas vezes têm certezas demais e dúvidas de menos, maneira inconsciente de superar as inseguranças.

Salinger
O personagem de Salinger é Holden Caulfield, um garoto de 17 anos, de família rica (ou classe média alta), que não vê sentido na vida, na escola que frequenta na Pensilvânia, nos amigos e professores, nos valores burgueses onde se forjou, no futuro ou no passado. Não tem ambições e vive esmagado pela angústia. É um niilista. Mas é capaz de amar: ama seus irmãos, principalmente o que já morreu e a menininha caçula, a encantadora Phoebe. Pólos inatingíveis e opostos: o morto e a infância que não volta mais. Apesar de tudo, é um rapaz sensível e incapaz de fazer o mal.

Já Dominic Molise, de Fante, também de 17 anos, é uma figura socialmente muito diferente, para dizer não dizer o oposto, de Caulfield. Molise é pobre, filho de um pedreiro nascido na Itália, assolado por dúvidas e angústias adolescentes, mas tem uma certeza inabalável: a de que será um grande jogador de beisebol. Nesse sentido, o personagem é muito identificável com milhões de crianças e jovens que sonham em ser jogador de futebol, um grande astro do rock ou da MPB e acreditam que nasceram predestinados ao sucesso até que, cedo para uns, tarde para outros, descobrem que são apenas pessoas comuns, como todos nós.

Fante
A narrativa de 1933 Foi um Ano Ruim é direta e sem rodeios de linguagem, à tradição de Hemingway e Bukowski, com sua poesia seca. Porém, o livro não conta apenas a história do jovem, pobre e sonhador, Dominic Molise, mas o enquadra no contexto politizado e feroz dos Estados Unidos da depressão pós-1929, onde famílias como a dele foram empurradas para a pobreza sem remédio. O conflito capital-trabalho é claro e permeia o romance, que, aliás, não é de modo algum panfletário ou engagé, o que quase sempre é característica da literatura menor e desimportante, já que os grandes escritores de ficção, de modo geral (salvo raras exceções – como Sartre), não se submetem à História, mas a transcendem – daí a imortalidade dos clássicos. O livro de Fante transcende o próprio contexto histórico.

Mais sofisticado, O Apanhador no Campo de Centeio, cuja narrativa se desenvolve em 1949, difere do livro de Fante, entre outros aspectos, porque explora com maestria um recurso de que poucos são dotados: a ironia, esse legado que nos deixou Kierkegaard. Como nos ensina o mestre dinamarquês, a ironia não é uma solução fácil que você coloca numa frase, mas é o próprio espírito de uma obra. Portanto, é difícil você pinçar uma frase ou outra para ilustrar o caráter irônico de uma obra: a ironia está na obra, a envolve como um manto. Mesmo assim, apenas a título de exemplo, destaco isso, dito pelo personagem Holden Caulfield: “Magnífico. Se há uma palavra que eu odeie é magnífico”.

Ou esta passagem:

Puxa, depois que a gente morre eles fazem o diabo com a gente. Tomara que quando eu morrer de verdade alguém tenha a feliz ideia de me jogar num rio ou coisa parecida. Tudo, menos me enfiar numa porcaria dum cemitério. Gente todo dia vindo botar um ramo de flores em cima da barriga do infeliz, e toda essa baboseira. Quem é que quer flores depois de morto? Ninguém”.

Já o personagem de Fante não tem tempo para ironia – e nem o autor maneja esse recurso. A poesia está na realidade. O Dominic de Fante é um prisioneiro da realidade; o Holden Caulfield de Salinger a despreza e odeia. O primeiro, filho de imigrante italiano, é católico; o segundo, um cético.

Seja como for, é um exercício interessante conhecer a adolescência segundo um e outro escritor. Tema que foi também abordado na obra de um dos maiores mestres da literatura, Gustave Flaubert, no romance Novembro, cujo protagonista é obcecado pelo Oriente mas não consegue abandonar o tédio de seu próprio quarto. Mas ficarei no critério de me restringir aos norte-americanos, ao século XX. O adolescente de Flaubert soaria deslocado, aqui.

O Apanhador no Campo de Centeio – o que muitos observam como se fosse um atributo do próprio livro – é dotado de uma aura “maldita”, já que era o livro que o assassino de John Lennon, Mark Chapman, tinha consigo quando matou o ex-beatle com cinco tiros. Um estigma que a obra-prima de J. D. Salinger não merecia.


Jerome David Salinger nasceu em Nova York, em 1° de janeiro de 1919, e morreu em Cornish (New Hampshire), em 27 de janeiro de 2010. O livro O Apanhador no Campo de Centeio foi publicado em 1951. No Brasil, é encontrado em belíssima edição da Editora do Autor.








John Fante era filho de italianos. Nasceu em Denver, em 8 de Abril de 1909, e morreu em Woodland (Califórnia) em 8 de Maio de 1983. 1933 Foi um Ano Ruim foi publicado postumamente, em 1985. É editado aqui pela L&PM, em edição pocket.