quarta-feira, 11 de abril de 2012

Voto de Marco Aurélio é contundente: "Gestação de anencéfalo assemelha-se à tortura"

 
Foto: Elza Fiúza/ABr
O ministro relator, ao fundo, à esquerda

Eu ia esperar o fim do julgamento do Supremo Tribunal Federal da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 para postar aqui. Mas o voto do relator, Marco Aurélio de Mello – a favor da descriminalização da interrupção da gravidez nos casos de anencefalia – merece um post à parte, pois é brilhante. Na verdade, reflete o que se espera da mais alta corte do país, cujo dever é zelar pela constitucionalidade das leis de um país laico. E, afinal, como ele próprio lembrou: “Não cogitamos sequer de aborto [no julgamento] mas de interrupção terapêutica de gravidez”.

O voto do relator é cabal. “O Estado brasileiro é laico”. Mais do que cabal, é contundente em algumas passagens. Por exemplo, quando diz: “O ato de obrigar a mulher a manter a gestação, colocando-a em uma espécie de cárcere privado em seu próprio corpo, desprovida do mínimo essencial de autodeterminação e liberdade, assemelha-se à tortura ou a um sacrifício que não pode ser pedido a qualquer pessoa ou dela exigido”.

Afirmou ainda: "Hoje é consensual no Brasil e no mundo que a morte se diagnostica pela morte cerebral. Quem não tem cérebro não tem vida", disse.

Pode-se criticar ou falar o que quiser de Marco Aurélio, mas seu voto e relatório (eruditos como sempre) são históricos, e vamos esperar que o STF, ao final, acabe com a hipocrisia que ronda o tema desde 2004, quando o caso chegou ao tribunal. O ministro lembrou a grande Simone de Beauvoir (autora do monumental O Segundo Sexo, considerado a bíblia do feminismo) em sua argüição: “Simone de Beauvoir já exclamava ser o mais escandaloso dos escândalos aquele a que nos habituamos”.

Leia algumas passagens do voto de Marco Aurélio (o link com a íntegra de seu voto está abaixo neste post):

“A garantia do Estado laico obsta que dogmas de fé determinem o conteúdo de atos estatais. Concepções morais religiosas, quer unânimes, quer majoritárias, quer minoritárias, não podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada.”

“Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.”

“Não cabe impor às mulheres o sentimento de meras ‘incubadoras’ ou, pior, ‘caixões ambulantes’, na expressão de Débora Diniz. Simone de Beauvoir já exclamava ser o mais escandaloso dos escândalos aquele a que nos habituamos. Sem dúvida. Mostra-se inadmissível fechar os olhos e o coração ao que vivenciado diuturnamente por essas mulheres, seus companheiros e suas famílias.”

“Atuar com sapiência e justiça, calcados na Constituição da República e desprovidos de qualquer dogma ou paradigma moral e religioso, obriga-nos a garantir, sim, o direito da mulher de manifestar-se livremente, sem o temor de tornar-se ré em eventual ação por crime de aborto.”

“Franquear a decisão à mulher é medida necessária ante o texto da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, também conhecida como “Convenção de Belém do Pará”, ratificada pelo Estado brasileiro em 27 de novembro de 1995, cujo artigo 4º inclui como direitos humanos das mulheres o direito à integridade física, mental e moral, à liberdade, à dignidade e a não ser submetida a tortura. Define como violência qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.”

“Ante o exposto, julgo procedente o pedido formulado na inicial, para declarar a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, do Código Penal brasileiro.”

Após o resultado (esperemos que majoritariamente seguindo o voto do relator), postarei outro texto no blog.

Leia a íntegra do voto de Marco Aurélio de Mello neste link: Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 - Distrito Federal

3 comentários:

Felipe Cabañas da Silva disse...

Uma argumentação brilhante, de fato, do ministro, demonstrando que no poder judiciário ainda tem gente que consegue olhar para frente, questionar leis fossilizadas e enfrentar velhos dogmas entronizados nos sentimentos mais primitivos da população. Não entendo nada de jurisprudência, mas me parece que esse pode ser o precedente (a depender do resto da votação, é claro) definitivo para que o aborto no Brasil passe a ser tratado como o que é, ou seja, questão de saúde pública, e não mais como pecado, heresia ou infanticídio.

O problema é que eu já vejo a campanha histérica dos beatos de Facebook se espalhando pelas redes sociais. Eu já vi gente bastante escolarizada compartilhando asneiras anti-abortistas que me deixaram abismado. E não adianta, isso toca nos sentimentos mais primitivos, e no Brasil quem é a favor do aborto ainda é indiscutivelmente minoria. Tanto é que na eleição passada teve candidato querendo apelar para esses sentimentos mais baixos para tentar virar a mesa... Mas, como bom proprietário de um engomado colarinho branco, ele também é um demagogo (o que me remete ao post de baixo), e ao que tudo indica já levou a mulher para fazer um aborto.

No Brasil é assim: eu já vi gente jurar de pé junto ser contra o aborto mas aceitar a ideia de procurar um aborto clandestino caso ficasse sabendo que o filho era portador de Síndrome de Down. Para a elite o aborto como está no Brasil é confortável: para todos os efeitos, você é contra, mas sabe que se o cerco apertar dá para pagar um aborto por 3000 reais numa clínica de primeiro mundo. Como sempre, quem se ferra é o povo, as mulheres que não têm essa condição e são condenadas ou a morrer em abortos precaríssimos ou a serem tratadas como infanticida. Mas é assim: o bom anti-abortista é tão defensor da vida que é sempre um ferrenho entusiasta da pena de morte. E não vê nisso qualquer contradição.

Eduardo Maretti disse...

Mas o fato é que não está sendo discutida sequer a descriminalização do aborto, nesse julgamento, mas tão somente a "interrupção terapêutica de gravidez" em casos de anencefalia! (em outras palavras: de natimortos). O voto do ministro Luiz Fux foi também brilhante. O julgamento foi interrompido (será retomado nesta quinta, 12) após o voto do ministro Lewandowski contra o relatório, a favor do obscurantismo. No momento, está 5 a 1 a favor da "interrupção terapêutica de gravidez" em casos de anencefalia. Falta só um voto para a ignorância ser vencida nesse processo, que é muito importante.

Felipe Cabañas da Silva disse...

Ah sim, eu sei que não está sendo discutido o aborto como um todo, mas vejo um precedente importante para sairmos desse obscurantismo. Indiscutivelmente, os fanáticos religiosos vão se rebelar contra uma possível aceitação de uma "interrupção terapâutica de gravidez". Porque interrupção de gravidez, terapêutica ou não, é aborto. E o obscurantismo à brasileira diz que o aborto deve ser repudiado em ABSOLUTAMENTE TODAS AS CIRCUNSTÂNCIAS. E não é brincadeira não: eu já vi gente educada, escolarizada, professor, defender as posições mais obscuras em matéria de aborto. É um assunto que no Brasil é um vespeiro - tanto é que foi enterrado pela Dilma antes de gerar qualquer desgaste político.