quarta-feira, 18 de maio de 2011

Impressões sobre "Ensaios", de Truman Capote: é possível ser jornalista sem ser imbecil


Truman Capote/Reprodução

A leitura de livro Ensaios (Ed. Leya), de Truman Capote, é um desses prazeres que se deve comunicar, pois é egoísmo não compartilhar o brilhantismo inebriante de sua narrativa, que vai de paisagens subjetivas da alma, ao falar por exemplo de Nova Orleans (título do texto que abre o livro), onde ele nasceu, a relatos jornalístico-literários (sua especialidade) com variados temas.

Entre os textos marcantes de Ensaios, "O Duque em seu domínio”, que, mais do que uma entrevista, é o relato de uma entrevista, com Marlon Brando, em um hotel em Kyoto, em 1957, onde Brando trabalhava numa locação do filme Sayonara.

A bonita edição da Leya inclui “Ouvindo as Musas”, não-ficção de cento e poucas páginas que conta a incrível turnê de uma grande companhia de teatro americana para apresentar em Leningrado a superprodução Porgy and Bess. Detalhe: em pleno ano de 1956, com o mundo dividido pela Cortina de Ferro. Nesse contexto absurdo, a arte supera as ideologias, como fica registrado pela voz de um funcionário da embaixada soviética encarregado de ciceronear a companhia estadunidense: “Quando os canhões são ouvidos, as musas silenciam; se os canhões estão silenciosos, as musas são ouvidas”.

Como Truman Capote era um dândi do século XX, sempre ao redor de ricos e famosos, ele estava invariavelmente nos lugares certos na hora certa. Por exemplo, para relatar um cruzeiro pela Grécia, onde ouve uma história macabra contada pelo capitão do barco (a literatura está em toda parte); em Tânger, onde conhece prostitutas internacionais, por assim dizer; suas impressões sobre os fotógrafos Richard Avedon e Cecil Beaton, com os quais conviveu, pelo menos o suficiente para deles fazer o retrato que sua pena pintava daqueles que achava importantes. Aqueles que podem ser pessoas, lugares ou situações.

A Sangue Frio


O escritor na casa da família Clutter

Um dos pontos altos de Ensaios é o texto “Fantasmas ao sol: a filmagem da A Sangue Frio”, título em si próprio elucidativo. Trata-se do relato (mais um brilhante relato) de Capote, dessa vez sobre sua participação, como “consultor” do diretor Robert Brooks, no filme A Sangue Frio, baseado no livro (obra-prima do new journalism) realizado sete anos antes, sobre o assassinato da família Clutter, no Kansas.

É muito interessante saber detalhes da produção de um filme tão difícil, e conhecer os porquês da permissão de Capote para que “o diretor Robert Brooks agisse como intermediário entre livro e tela”. Diz Truman Capote no texto: “Ele era a única pessoa que aceitava inteiramente dois pontos importantes: eu queria o filme feito em preto e branco e queria um elenco de desconhecidos – isto é, atores sem rostos públicos”.

E mais uma coisa, elucida o autor de A Sangue Frio, é que o filme “tivesse cada cena filmada em seu local original”, onde realmente aconteceram os eventos descritos na reportagem literária do livro: a casa do crime, o tribunal onde os criminosos foram julgados, a loja de variedades onde os assassinos “compraram a corda e a fita usadas para imobilizar as quatro vítimas”, entre outros elementos.

Um corvo

Como se não bastasse o mergulho na psique norte-americana da primeira metade do século XX (cinema, arte, espetáculo, fotografia, crime, ilusões), o livro Ensaios traz relatos que literalmente saem do terreno da realidade, embora justamente da realidade tratem. Falo principalmente da narrativa “Lola”, sobre um corvo que o escritor ganhou de presente de uma doméstica, uma “jovem do vilarejo” que trabalhava para ele quando o escritor morou na Sicília. “Um presente espantoso”, avalia o autor.

É espantoso, mesmo. Um corvo. Só que esse pássaro, descobre o narrador, tem uma personalidade, talvez a personalidade de todos os corvos, esse ícone eternizado – mas também estigmatizado – por Edgar Allan Poe. Mas o fato, bizarro e ao mesmo tempo delicado e bonito, é que o corvo passa a interagir com as pessoas, com suas asas cortadas, como "O Albatroz" de Baudelaire, e o estranho personagem passa realmente a fazer parte do cotidiano das pessoas, como um cachorrinho de estimação desses que existem aos milhões hoje, e que todo mundo acha “tão inteligente que só falta falar”. Mas é um corvo, não um cachorrinho.

É tão absurdo que você se pergunta: mas isso é realidade ou ficção? Diante da beleza da narrativa, a resposta a essa pergunta é irrelevante, embora se saiba que Capote fazia de fato não-ficção.

Truman Capote mostrou que é possível ser jornalista sem ser imbecil.

4 comentários:

Mayra disse...

Eu já estou na lista de empréstimo do seu A sangue frio. Depois dessa brilhante resenha - parabéns mesmo, baita texto delicioso que vai fazendo a água na boca crescer pelo livro comentado - bem, depois disso, também me candidato à lista do Ensaios.
E quanto à saborosa história do corvo siciliano, a gente sabe que não tem nada mais ficção que a real. Life is a tale...

Felipe Cabañas da Silva disse...

"É possível ser jornalista sem ser imbecil". Edu, isso me cheira a crise existencial de jornalista no mundo da informação-mercadoria... hehe... Mas é claro que é possível ser jornalista sem ser imbecil. Assim como é possível ser médico e advogado e parteira ou coveiro sem ser imbecil. O processo de mercantilização-imbecilização independe, no mundo de hoje, da profissão. É claro que o processo de empobrecimento do jornalismo é mais gritante, mas tenho conhecido, infelizmente, muitos professores imbecis por aí (e justamente a classe que mais deveria zelar pela não-imbecilização). Mas temos que olhar para esses grandes gênios do jornalismo mesmo, como Truman Capote e Gay Talese, que quiseram levar o próprio jornalismo a um patamar mais elevado, e também lembrar de grandes escritores que apesar de não se declararem adeptos propriamente de um jornalismo literário, tiveram uma obra jornalística notável. O Gabriel Garcia Marques é o primeiro que me vem à cabeça. Mas também devemos lembrar de vários brasileiros, como Drummond, Mario Quintana, o próprio Machado de Assis, Graciliano Ramos e outros. Todos esses de alguma forma enriqueceram o jornalismo com a literatura e mostraram que é possível ser jornalista sem ser imbecil.

Mayra disse...

O lado bacana do facebook: postei o link pra sua resenha lá e minha prima, que mora no litoral do RS, gostou e compartilhou o link!! Legal, né?! A rede boa...

Eduardo Maretti disse...

Legais os comentários acima.

Mais do que ser um não-imbecil, Capote é genial, Felipe!, isso deve ser levado em consideração.

Bacana a divulgação pelo Facebook, Mayra!