Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
(Carlos Drummond de Andrade)
Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
(Carlos Drummond de Andrade)
Atualizado às 23:52
Atualizado às 23:52
4 comentários:
Maravilhoso esse poema. Drummond pra mim é um conforto, mesmo em suas expressões mais pessimistas, como em "Os ombros suportam o mundo" http://www.veraregina.com.br/cantinho/portugue/poe-bras/26.htm.
São os grandes detalhes que fazem a vida valer a pena.
Caro Paulo, teu comentário citando "Os ombros suportam o mundo" é tão pertinente que atualizei o post, colocando também esse poema que você linkou, que sem dúvida é um dos mais belos de Drummond, entre tantos outros.
Legal, Edu. Pra mim são mesmo dois dos maiores poemas que já li.
E minha pesquisa de pós-doc é Noel & Drummond!!! Os dois mestres que fundaram o lirismo outsider na cultura brasileira no mesmo momento em 1930: o gauche drummondiano e o filósofo-sambista noelino!
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