Por José Arrabal
Dentre todas as profissões, entendo que três são as fundamentais.
Fundamental é ser Médico, ao tratar da saúde da vida.
Fundamental é ser Orientador Religioso, ao cuidar do encontro com Deus.
Fundamental é ser Professor, ao ensinar a viver.
As demais profissões, com suas evidentes importâncias, são devedoras dessas três que considero fundamentais.
Ainda que homem de variados ofícios, em minha trajetória profissional sinto-me sempre Professor. Leciono desde os dezessete anos de idade, quando pela primeira vez entrei em sala de aula para alfabetizar adultos carentes num curso gratuito de Supletivo. Creio, entretanto, que também ensino ao exercer minhas atividades de Jornalista. E há em mim claro propósito de educar, ensinar a viver, nas ocasiões em que sou Escritor às voltas com ensaios, prosa de ficção ou poesia.
Este é o mês do Mestre. No quinze de outubro comemoramos o Dia do Professor. Vastas, intensas e agradecidas são as recordações afetivas que trago de meus Mestres.
Sem jamais esquecer, lembro com evidência da ocasião em que mamãe levou-me ao encontro daquela que iria me alfabetizar, bem no limiar dos anos cinqüenta do século passado.
Em silêncio ouvi a conversa das duas, de minha mãe e da Mestra. Desta, logo me agradaram o sorriso, mais seu nome rápido e amplo – Zoé - que depois soube por meu pai ser, em grego, Vida.
(Estranho acaso das significações: em meus seis primeiros meses de existência, tive por mãe-de-leite uma senhora libanesa de vastos seios chamada Málake, que, em árabe, quer dizer Liberdade. Aos seis anos, vi-me entregue à Vida, em sua sala de aula no Grupo Escolar Monteiro da Silva, na cidade capixaba onde nasci, Mimoso do Sul. Vida & Liberdade que em mim se associam de modo essencial.)
A Professora, ao ensinar, não nos trouxe o B-A-BÁ. Com firme intuição de moderna educadora, em sala de aula lia histórias para nós. Lia com vivo sorriso, voz clara, gostosa encenação. Era um bocado divertido ouvir suas histórias.
Se nos percebia mais atraídos por alguma palavra do enredo da história lida, escrevia no quadro negro e em muitos modos de escrever - com letra de forma, manuscrita, maiúscula e minúscula – essa palavra, nos despertando a atenção para esses seus desenhos caligrafados na lousa.
Daí passávamos a repetir com a Professora a tal palavra, a princípio em voz baixa, num sussurro que progressivamente se elevava e nos levava à voz alta, quando, sob regência da Mestra, retornávamos ao sussurro de início. Então fazíamos do verbo registrado verso musicado com melodia parodiada de alguma canção bem conhecida de todos nós.
Assim brincávamos com as palavras em sala de aula.
Foto: Edu Maretti |
Claro que nos encaracolamos na sala, numa andança coletiva a princípio vagarosa até corrermos repetindo de múltiplos modos caracol-caracol-caracol.
Passados três meses de aulas, eis que num sábado, um pouco antes da hora do almoço, de olho em páginas de jornal que cobriam o piso recentemente encerado da sala de minha casa de infância, intrigado, interroguei a meu pai:
- O que é epóca? – pronunciei assim, com a tônica na segunda sílaba.
- Epóca? – estranhou papai.
- Sim, Epóca... Aqui! – apontei a palavra registrada no jornal.
- Época ! Época ! – corrigiu papai e, feliz, levantou-me do chão, seguro por suas mãos para o melhor abraço de minha vida. – Ele já sabe ler! Ele já sabe ler! – e logo levou a notícia a mamãe, com tamanho entusiasmo que a bem da verdade livrou-me da vergonha de ter lido errado, certo de que não era mau reconhecer e corrigir um erro.
Ao almoçar, honraram-me com o melhor pedaço de frango e bem maior fatia de pudim na sobremesa.
Na segunda-feira, papai e mamãe deram-me de presente uma caixa com um tabuleiro e muitas peças de madeira, meu jogo de palavras cruzadas que tenho comigo até hoje junto de outras lembranças de infância, relíquias preciosas de minha história pessoal, evidentes testemunhas de que viver é bom e aprender também, com liberdade e prazer.
Palavras cruzadas que levei para a escola já no dia seguinte e com elas vivenciamos feliz farra, através de brincadeiras sugeridas por Dona Zoé, o que mais nos encaminhou à arte de escrever.
Entendo que assim cresceu em mim o gosto por ler e escrever, no seio do prazer de recordar histórias da vida vivida. Bons sabores que sempre me encaminham, agradecido, a homenagear os Mestres que tive no decorrer de minha formação cultural, grato igualmente a todos os que me ensinaram algum lance de dados para o aprimoramento da vida.
Verdade é que, se aprendemos a viver com nossos cinco sentidos, sempre há o que aprender com alguém mais, além dos Professores nas salas de aula. Para tanto basta termos nossos sentidos receptivos, livres de preconceitos excludentes. Outubro é o mês do Mestre.
Mês de todos, se vivemos associados por valores fraternos e solidários.
Decerto bem melhor será a vida, ao nos cumprimentarmos uns aos outros deste modo, desde a manhã:
- Bom dia, Professor!
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José Arrabal é professor universitário, jornalista, escritor. Autor de “Nacional e o Popular na Cultura Brasileira: Teatro” (Editora Brasiliense), “Sherlocks on the Rocks nas Diretas Já”, “A Sociedade de Todos os Povos” (Editora Manole), “A Princesa Raga-Si”, “Lendas Brasileiras, Vol 1/Vol. 2” (Editora Paulinas), entre outros.
Texto publicado originalmente na revista Direcional Educador/Out.-2011 [josearrabal@uol.com.br]
Um comentário:
E sempre haverá o que aprender com José Arrabal, figura sábia e sensível. Um dia, anos passados, em que eu lhe ofereci carona de carro, me pediu que entrasse com ele, sem dar explicações, num supermercado. Comprou-me um caderno e uma caneta e disse, entregando-me os objetos:: "Toma, vá escrever". Linda essa crônica do post.
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