Não se pode falar levianamente de José Saramago. Mas não sou adepto da mitificação do autor de O Evangelho segundo Jesus Cristo. Construiu-se uma aura de infalibilidade político-literária em torno do escritor português que me parece falsa. Não simpatizo com a persona Saramago. E não seria agora, que ele morreu, que eu mudaria de opinião, não é?
O acima citado Ensaio sobre a Cegueira é de fato inquietante, bem construído. Mas, quando o li, foi para mim inevitável o paralelo com No País das Últimas Coisas, de Paul Auster, que, como sincronicidade junguiana, li por acaso na mesma época. As duas obras são relatos metafóricos do caos num mundo apocalíptico, onde os hábitos e os desejos deixam de ter sentido, e a própria condição humana se fragmenta. Mas, no livro de Auster, essa realidade não está impregnada da prolixidade lusitana de Saramago, cujo Ensaio sobre a Cegueira seria uma obra mais bem resolvida se tivesse cerca de 60 páginas a menos.
No País das Últimas Coisas é cabal, implacável; alegórico, e, no entanto, realista (uma solução narrativa muito difícil de se conseguir). Ensaio sobre a Cegueira é alegórico e irrealista. (Neste parágrafo não faço nenhum julgamento de valor, é só uma constatação.)
Outra coisa que me incomoda é que Saramago parece ter virado unanimemente sinônimo de genialidade, mas parece que os chamados críticos se esqueceram de Gabriel García Márquez e Jorge Amado, literariamente muito superiores ao autor lusitano, pela capacidade, eu diria, sobrenatural com que o colombiano e o baiano elaboraram a prosa autêntica, culturalmente visceral e anti-moralista que vemos em obras como Cien Años de Soledad ou Gabriela Cravo e Canela, por exemplo. Mas a intelligentzia da USP não aprecia Jorge Amado. Cult é Saramago, que é europeu e defende La Habana de Fidel. Azar de quem acredita na intelligentzia da USP.
Falo isso com tranqüilidade, porque a morte de José Saramago não acrescenta nem tira nada de sua obra e de sua história, que são grandes, embora questionáveis. Eu ia dizer que, se chegasse ao céu, Saramago ia ser obrigado a ter umas aulas com Jorge Amado, sobre certas coisas que não se aprende nos livros. Mas talvez eles não se encontrem no céu, e sim no inferno apresentado por Virgílio aos condenados, segundo Dante. Afinal, Amado pertencia ao panteão dos Orixás e Saramago era ateu.
Um comentário:
“No país das últimas coisas” deixa marcas.
Embora eu ache que o Nobel de Literatura é mais marcante pelas ausências que pelos laureados (Tolstói, Borges, James Joyce, Proust, Nabokóv e Kafka são as ausências mais consensuais), ainda quero ver o genial Paul Auster galardoado pela academia sueca. Agradeço até hoje a um certo Gabriel (hehe) ter me apresentado este gênio louco que desconstrói tantas coisas com uma narrativa tão clássica... Outro nome da atualidade que creio que merece um Nobel é Kundera. Sobre os outros candidatos, como Ian Mcewan e Phillip Roth, não falo nada porque nunca li. Só sei que Mcewan é um desses escritores formados em “curso superior de escrita criativa”, coisa de americano que veio parar no Brasil, no Rio Grande do Sul. Mas como tenho convicção que literatura não se aprende na escola, tenho alguns preconceitos contra ele. Literatura é e sempre será profissão de fé, vocação, paixão e loucura. Vai chegar o dia em que no caderno de empregos do jornal terá um anúncio: “Procura-se um romancista”, “Procura-se um poeta”. A literatura, então, estará morta.
Saramago, para mim, era principalmente uma referência de lucidez. Em termos literários, não era dos escritores que mais me entusiasmavam, mas considero suas opiniões políticas muito lúcidas e coerentes. É difícil manter a coerência sendo um crítico contumaz e ao mesmo tempo sendo tão bem sucedido no mundo que é o alvo da crítica. Mas acho que ele conseguiu se equilibrar nessa balança até certo ponto ingrata. Escolher a ilha seca de Lanzarotte para se exilar e se dedicar às palavras foi, na minha opinião, um desses atos de coerência.
Postar um comentário