terça-feira, 13 de novembro de 2012

A voz das provas


Jânio de Freitas

(Publicado na Folha de S. Paulo)

Foi uma das coincidências de tipo raro, por sua oportunidade milimétrica e preciosa. Várias peculiaridades do julgamento no STF, ontem, foram antecedidos pela manchete ao pé da pág. A6 da Folha de domingo, título de uma entrevista com o eminente jurista alemão Claus Roxin: "Participação no comando de esquema tem de ser provada". O subtítulo realçava tratar-se de "um dos responsáveis por teoria citada no julgamento do STF", o "domínio do fato". A expressão refere-se ao conhecimento de uma ocorrência, em princípio criminosa, por alguém com posição de realce nas circunstâncias do ocorrido. É um fator fundamental na condenação de José Dirceu, por ocupar o Gabinete Civil da na época do esquema Valério/PT.

As jornalistas Cristina Grillo e Denise Menchen perguntaram ao jurista alemão se "o dever de conhecer os atos de um subordinado não implica corresponsabilidade". Claus Roxin: "A posição hierárquica não fundamenta, sob nenhuma circunstância, o domínio do fato. O mero ter que saber não basta". E citou, como exemplo, a condenação do ex-presidente peruano Alberto Fujimori, na qual a teoria do "domínio do fato" foi aplicada com a exigência de provas (existentes) do seu comprometimento nos crimes. A teoria de Roxin foi adotada, entre outros, pelo Tribunal Penal Internacional.

Tanto na exposição em que pediu a condenação de José Dirceu como agora no caótico arranjo de fixação das penas, o relator Joaquim Barbosa se expandiu em imputações compostas só de palavras, sem provas. E, em muitos casos, sem sequer a possibilidade de se serem encontradas. Tem sido o comportamento reiterado em relação à quase totalidade dos réus.

Em um dos muitos exemplos que fundamentaram a definição de pena, foi José Dirceu quem "negociou com os bancos os empréstimos". Se assim foi, é preciso reconsiderar a peça de acusação e dispensar Marcos Valério de boa parte dos 40 anos a que está condenado. A alternativa é impossível: seria apresentar alguma comprovação de que os empréstimos bancários tiveram outro negociador --o que não existiu segundo a própria denúncia.

Outro exemplo: a repetida acusação de que José Dirceu pôs "em risco o regime democrático". O regime não sofreu risco algum, em tempo algum desde que o então presidente José Sarney conseguiu neutralizar os saudosos infiltrados no Ministério da Defesa, no Gabinete Militar e no SNI do seu governo. A atribuição de tanto poder a José Dirceu seria até risível, pelo descontrole da deformação, não servisse para encaminhar os votos dos seguidores de Joaquim Barbosa.

Mais um exemplo, só como atestado do método geral. Sobre Simone Vasconcelos foi onerada com a acusação de que "atuou intensamente", fórmula, aliás, repetida de réu em réu. Era uma funcionária da agência de Marcos Valério, por ele mandada levar pacotes com dinheiro a vários dos também processados. Não há prova de que soubesse o motivo real das entregas, mesmo admitindo desde a CPI, com seus depoimentos de sinceridade incomum no caso, suspeitar de motivo imoral. Passou de portadora eventual a membro de quadrilha e condenada nessa condição.

Ignoro se alguém imaginou absolvições de acusados de mensalão. Não faltam otimistas, nem mal informados. Mas até entre os mais entusiastas de condenações crescem o reconhecimento crítico do descritério dominante, na decisão das condenações, e o mal-estar com o destempero do relator Joaquim Barbosa. Nada disso "tonifica" o Supremo, como disse ontem seu presidente Ayres Britto. Decepciona e deprecia-o --o que é péssimo para dentro e para fora do país.

5 comentários:

Felipe Cabañas da Silva disse...

O Jânio é atualmente um dos jornalistas mais lúcidos discutindo não somente o mensalão como toda a vida política brasileira. Tem sido uma grata presença entre os articulistas políticos da Folha, que, de um modo geral, no assunto mensalão não têm feito muito mais que reproduzir o senso comum segundo o qual o julgamento é "uma vitória histórica na luta contra a corrupção" - mas muito ainda precisa ser feito! rs (que tal começar aplicando a mesma rigidez no caso do mensalão tucano?).

Para mim, ainda que eu rejeite veementemente a visão "partidário-marqueteira" segundo a qual o julgamento do mensalão é uma farsa destinada a desestabilizar o "governo do povo", cuja estrutura de areia não passa de uma massa informe de factóides espalhados pela imprensa interesseira, também é nítido que não faltam pontos nebulosos no julgamento e suas respectivas punições. Neste último ponto, "punições", minha visão leiga (mas crítica) me faz ter a sensação de que tudo é muito desproporcional - o que mostraria que ou nossos códigos penais comportam um certo grau de esquizofrenia (o que é muito provável), ou os "supremos ministros" andam precisando tomar lições de dosagem. Exemplo mais escandaloso para mim: o Dirceu, mandante, arquiteto, artífice maior do "plano maligno destinado a desestruturar a democracia", pega 10 anos, mas Kátia Rabello, a "sub do sub do sub", pega 16 anos. Oi???

Marcos Valério, um mero delinquente financeiro (ainda que as somas movimentadas sejam astronômicas) pega mais de 40 anos, pena superior à de muitos homicidas, parricidas ou congêneres. Oi???

Eu não falo mais sobre termos processuais, dada a nebulosidade do processo e da informação veiculada. Mas em termos penais, tudo me parece bastante exagerado e despropositado. Não continuasse a corrupção a correr solta apesar de supremos e Barbosas, eu tenderia a dizer que os "mensaleiros" viraram uma boa trupe de bodes expiatórios.

Edu Maretti disse...

Felipe, juro! que não consegui entender bem o que quer dizer "rejeitar veementemente a visão "partidário-marqueteira" segundo a qual o julgamento do mensalão é uma farsa destinada a desestabilizar o "governo do povo", cuja estrutura de areia não passa de uma massa informe de factóides espalhados pela imprensa interesseira" - rs...

Sobre o Jânio de Freitas, ele é uma ôtoridade, um cara das antigas que não precisa provar (e nem quer provar) mais nada a ninguém. Mas ele é uma voz solitária na Folha. Quem mais ler na Folha hoje?

Acho que só Mônica Bergamo, que faz um jornalismo-notícia igualmente de alto nível, justo, inteligente (o lado mais contemporâneo da reportagem que transita por todas as editorias). E que, apesar de ser da Folha,merece ser lido, na minha modesta opinião (ao contrário daquele monte de bobagem da saudosa página 2 onde já escreveu Claudio Abramo).

Bergamo é uma colunista-repórter que dá voz a versões mesmo contrárias aos interesses mais claros do jornal.

Tanto em relação a Mônica Berbamo quanto a Jânio, a Folha precisa mais deles do que o contrário.

Felipe Cabañas da Silva disse...

Eu quis dizer que não acredito que o julgamento seja uma farsa assentada em factóides fabricados pela mídia, julgamento que teria como objetivo desestabilizar "um projeto político bem sucedido". Essa versão é muito usada pelo chamado "núcleo político" do mensalão e alguns petistas mais ferrenhos compraram. Eu não aceito.

O julgamento é nebuloso. Cheio de pontos de interrogação. Me parece claramente que os nossos "supremos" estão errando a mão nas penas. Mas dizer que é uma fantasia é outra coisa.

Mr. brBlues disse...

Assentada a poeira das eleições muncipais para prefeitos, a mídia, essa mesma, golpista e tariçoeira, começa a reavaliar o tremendo circo midiático que foi o julgamento do "mensalão" - assim mesmo, com aspas, bem ao gosto da grande imprensa.

Então lá vai ela, marchando à revisão de suas manchetes bombásticas e do histrionismo do velho Barbosa (lembram do personagem do Ney Latorraca, na TV Pirata, lá pelso idos dos anos 1980?)

Aí vai mais uma ponderação da mídia, com ares de mea culpa.

http://colunas.revistaepoca.globo.com/paulomoreiraleite/2012/11/12/condenado-sem-dominio-nem-fato/

Eduardo Maretti disse...

Pois é, caro Luiz Mr. Blues. Mas não sei se a mídia faz mea culpa, na minha opinião não faz, não...

O PT soltou hoje uma nota sobre o julgamento da Ação Penal 470 bastante contundente. Até publiquei um post sobre isso.

abraços