sexta-feira, 1 de março de 2013

Tempo de se sentir aidética


Fotos: Elza Fiúza/ABr


Por Camila Claro*

Os fatos desta narrativa aconteceram comigo no início de 2012, portanto trata-se de uma história real, mas decantada pela memória. Sou filha de médica e, conscientizada precocemente sobre as necessidades do sistema de saúde, mantenho desde os 18 anos o hábito de doar sangue. Já fiz doações para diversos hospitais, algumas destinadas a pacientes específicos, mas na maioria das vezes com o intuito de abastecer os estoques das instituições, além de ter convencido amigos a participar do processo. Quando mais jovem, até lamentava que meu tipo sanguíneo fosse A positivo, o mais comum entre os brasileiros, portanto o menos necessário. Achava ser uma dessas ironias do destino o fato da única pessoa que conhecia do tipo O negativo (o chamado “doador universal”) ter repulsa à visão de sangue.

Familiarizada com o procedimento dos hemonúcleos, eu sabia que algum tempo depois das doações receberia em casa uma carteirinha confirmando a sorologia negativa para sífilis, hepatite B e C, HIV, HTLV, doença de chagas, etc. Ela chegava em um envelope pequeno, branco, com o logotipo do hospital. Daquela vez, porém, chegou um envelope grande, em papel pardo, com a inscrição “Confidencial” e meu nome, sem nenhum sinal do remetente. Dentro dele, uma carta solicitando que eu telefonasse para o hemonúcleo e marcasse um horário para receber orientações médicas. O texto esclarecia que as informações não seriam divulgadas por telefone, nem antes da data agendada, nem a outra pessoa que não o próprio doador.

A consulta foi agendada para uma data dali a três semanas, portanto mais de um mês distante da última doação. Hoje esse prazo me parece compreensível, uma tentativa de cobrir qualquer janela imunológica, mas para quem recebe o envelope pardo e fica sem saber, nem vagamente, qual o problema detectado nos exames, trata-se de uma espera bastante longa, na qual sobra tempo para conjecturar hipóteses. Por exemplo:

– Será que fui picada por um inseto transmissor de doenças como dengue e Chagas?

Instrumentos da manicure eram esterilizados?
– Será que as agulhas do acupunturista eram esterilizadas? E os instrumentos do dentista e da manicure?

– Posso ter sido contaminada durante uma relação sexual?

– Meu parceiro pode estar contaminado? Será que ele usa drogas injetáveis ou me traiu?

– E se eu estiver grávida e tiver contaminado o bebê?

A maioria das hipóteses anteriores não chegava a me assustar, mas certamente teriam preocupado uma pessoa mais paranoica ou hipocondríaca. Eu estava certa de não ter me exposto a nenhuma das situações tradicionais de contágio, contudo o fato de conhecer casos bizarros relacionados na literatura médica contribuía para a sensação de insegurança. Em um desses casos, uma mulher atendida no Instituto Emílio Ribas, em São Paulo, foi identificada como portadora do HIV depois de ter sido mordida pelo filho portador, que estava em crise convulsiva e havia antes mordido a própria língua. Teria eu entrado em contato com o sangue de alguém em alguma situação estranha da qual já nem me lembrava?

Tudo que eu podia fazer era me questionar e argumentar seguindo um raciocínio lógico. As palavras eram como pedaços de terra firme através dos quais eu caminhava por um pântano silencioso, no qual as conexões permanecem submersas. Era como avaliar a melhor trilha em um terreno recoberto de estatísticas. Por exemplo, calcula-se que a chance de aquisição do HIV em uma relação anal passiva única com parceiro infectado é de 1 a 2%, o que matematicamente significa que poderíamos ter dezenas de relações sexuais desse tipo sem proteção nem contágio. Mas quem se arriscaria? Ou melhor, quem poderia manter a tranquilidade se tivesse se arriscado?

Enfim chegou o dia da consulta com a médica do hemonúcleo. Sentada na sala de espera, percebi que as pessoas ali presentes não eram simples doadoras. O clima descontraído que eu normalmente encontrava no local fora substituído por uma nítida tensão. As pessoas olhavam o relógio, mexiam-se ansiosamente nas cadeiras e faziam perguntas em voz baixa à recepcionista. Resolvi tirar da mochila meu envelope “confidencial” e deixá-lo a vista em uma tentativa de romper o isolamento envergonhado que se instalara entre os presentes. Deu certo. Uma mulher puxou papo e disse ter recebido a mesma mensagem. Ela falou que “se garantia”, mas não podia garantir o marido. Aquelas semanas de espera entre a recepção da carta e a consulta pareciam ter criado uma crise em seu casamento.

Entrei no consultório e fui informada que o resultado dos meus testes ELISA 1 e 2 (do inglês “Enzyme-Linked Immuno Sorbent Assay”), ambos usados no diagnóstico da infecção por HIV, fora “indeterminado”. Em um momento assim percebemos como são poderosas as palavras. Eu queria ouvir “negativo”, havia me preparado para ouvir “positivo”, mas o que significaria aquele “indeterminado”? Na prática significava que meu sangue doado anteriormente seria descartado e eu deveria repetir o exame. Não havia elementos suficientes para confirmar ou descartar a infecção por HIV. Depois de tanta espera, eu continuaria sem qualquer informação objetiva, e o pior, teria que aguardar mais algumas semanas até obter o novo resultado.

Essa é a metodologia adotada pelo banco de sangue, mas é claro que, tendo plano de saúde e mãe médica, eu não ficaria esperando de mãos atadas. Fui a outro hospital e a um laboratório independente no mesmo dia e retirei outras duas amostras de sangue para exames com resultados mais rápidos. Felizmente foram ambos negativos. O mesmo não aconteceu com a amostra colhida no hemonúcleo, que novamente apontou um resultado “indeterminado”.

A “indeterminação” não me preocupou desta vez, a não ser por um motivo: fiquei cadastrada como persona non grata nos hemocentros do Brasil inteiro, que atuam segundo um sistema unificado e descentralizado, o SUS. Isto significa que estou impedida de realizar doações até obter, através dos exames realizados no próprio hemonúcleo, um resultado determinando a sorologia negativa para HIV. Enquanto isso, o governo gasta milhões de reais em campanhas e material publicitário para incentivar doações e descarta voluntários com tatuagem e homossexuais assumidos.

*Camila Claro é jornalista

5 comentários:

Paulo M disse...

Bem, sou dessas pessoas mais paranoicas ou hipocondríacas. Talvez nunca mais fosse ao médico nem ia mais "querer minha mãe" rsrs.

Erros políticos de governo são corrigíveis. (Antes do plebiscito de 2005, faziam campanha para desarmar a população. Depois de lamentavelmente desaprovado o trecho do estatuto do desarmamento, agora fazem campanha de novo contra o comércio e a posse de armas.) Tem umas patetadas de vez em quando. Mas o preconceito social é mais grave e mais arraigado.

Paulo M disse...

PS: Muito boa a crônica da Camila. Fiquei até nervoso. Bom que não não tinha nenhuma doença crônica he he.

Alexandre disse...

Muito bom para um roteiro.

Daniel Razon disse...

Que barbaridade!!.....esse com toda certeza é mais um caso, que só não ficou no anonimato porque nos foi brilhantemente relatado pela Camila, a qual tem acesso às redes sócias e não teve medo nem vergonha (e sim consciência) de expor seu caso....e porque teria?, se foi inocente ou melhor, vitima!!....já a maioria dos que devem ter passado por situações assim, acabam por confidenciar apenas num restrito circulo social, o que me faz pensar que é ai que radica um dos maiores problemas da humanidade, para ser considerada como tal. Temos a tremenda capacidade de passar por situações extremas, “agüentar no osso” e depois de conseguirmos vencer o obstáculo, nossa reação é de alivio é claro mas, sobre tudo (na maioria) de um misto de; deixa para lá e não adianta é assim mesmo, então soltamos um, ufffa consegui , contra tudo e contra todos!!....cadê o poder de indignação da população,diante de fatos como este e outros que se repetem? e que, vez que outra são mostrados em duvidosos programas de televisão, os quais lucram com o sofrimento alheio e fazem com que toda essa população a que me refiro, fique na torcida por este ou aquele caso isolado que é mostrado com ares de tragédia (assim vende mais) e que obviamente chegara a final feliz graças ao auxilio de um providencial (porque vende mais) “doador /salvador” anônimo e assim; “um dia afinal porque temos direito a uma alegria fugaz, e numa ofegante epidemia continuaremos a pular carnaval”....mas, tudo bem, vai passar!!!!
Abraços!!
Daniel R.

Anônimo disse...

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