segunda-feira, 9 de julho de 2012

A arte e o poder


“Como o Mal é forte!”


A frase acima é de Hendrik Höfgen, principal personagem do livro Mefisto, de Klaus Mann. A obra (da editora Estação Liberdade), que acabo de ler, estava há cerca de dez anos em minha estante e, por algum motivo, eu ainda não havia lido.

O romance aborda a ascensão de um ator de teatro provinciano durante o período da Alemanha nazista e sua relação simbiótica com os donos do Terceiro Reich: ele, servindo como uma espécie de brinquedo aos donos do poder e, por sua vez, valendo-se de suas relações com os altos membros do partido Nacional Socialista de Adolf Hitler para conseguir sucesso, fama e riqueza. Uma espécie de metáfora do pacto com o diabo – tema tantas vezes utilizado na literatura, como em Fausto, de Goethe (livro baseado em uma história popular da Alemanha), e Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa.

Mas, no caso de Mefisto, a abordagem é totalmente desprovida de qualquer aspecto metafísico e/ou religioso, resumindo-se ao caráter objetivo das relações entre arte e poder, fato que impede que sua leitura seja objeto de um encantamento, por assim dizer, que as relações com o invisível dão a outras obras que abordam o tema do pacto.

Do ponto de vista formal, o livro não é uma obra-prima e tem alguns problemas, uns mais, outros menos graves. Um que me parece um vício narrativo incômodo: cada personagem que aparece pela primeira vez em Mefisto é apresentado a partir de seus traços físicos e vestuário, o que a partir de certa altura começa a se tornar enfadonho. Esse modelo, ou essa forma, digamos, naturalista da narrativa quanto ao aspecto das personagens, compromete a fluência da leitura, truncando-a: penso que, se para o autor é tão importante que haja uma descrição tão minuciosa da forma da sobrancelha, dos olhos, da testa, do queixo e das roupas de todos os personagens, isso tem de ficar mais diluído ao longo da narrativa, justamente para não truncar, não se perder a fluência e a espontaneidade.

Outro ponto, este ainda mais grave, é a permanente intromissão do narrador, com suas opiniões, seja diretamente, seja por meio de ironias pouco sutis, na narrativa. Ok, o nazismo e tudo o que o engendrou é abominável. Mas esse caráter horrendo da realidade histórica ou romanesca e de seus protagonistas não justifica que o autor use o narrador para opinar permanentemente, o que tira do leitor a prerrogativa ou o benefício da ambigüidade, da dúvida e do mistério, características de todo grande romance.

Seja como for, e ressalvas feitas, é bastante interessante a experiência de ler Mefisto de Klaus Mann. Aparadas as arestas acima criticadas, vale a pena ler. Leia.

Um modelo real

Para escrever Mefisto e construir a história de Hendrik Höfgen, o personagem central, Klauss Mann usou um modelo real: seu ex-cunhado Gustaf Gründgens, que foi casado com a irmã de Mann, Erika, o que o autor nunca admitiu. Mas a verdade é que a obra, de 1936, ficou mais de 40 anos proibida na Alemanha, porque a justiça considerou que difamava a imagem do ex-cunhado de Mann. De fato, não há como negar as enormes semelhanças, ou melhor, mais do que isso, o paralelismo entre o personagem Höfgen e o cunhado Gründgens. Ambos são atores extraordinários, talentosos, ambiciosos e, para culminar, chegaram ao auge em dois momentos: o artístico, quando interpretam nos palcos o Mefistófeles, em peça baseada no Fausto de Goethe; e o pessoal, quando o personagem Höfgen, assim como seu modelo, chega a um alto cargo ligado à cultura na Alemanha nazista, graças a suas relações com o poder. Hendrik Höfgen, o ator fictício, vive um drama de consciência, que procura aplacar interferindo a favor de um ator comunista contra a repressão nazista. Consta que o homem Gustaf Gründgens, de fato, aproveitando sua íntima relação com o nazismo, ajudava perseguidos políticos.
Reprodução
O escritor Klaus Mann
Os ingredientes da vida real apontam para algo mais do que casual no rumoroso relacionamento entre Klaus Mann e o ex-cunhado Gründgens e o ódio explícito com que este é retratado pelo autor em Mefisto: Mann era homossexual, e Gründgens, ex-casado com sua irmã Erika Mann, era bissexual. Daí não se pode inferir ou concluir que houvesse um ciúme inconfesso de Klaus Mann em torno do relacionamento do ator que foi seu modelo para Mefisto e também seu cunhado. Mas a informação merece registro.

O autor, Klaus Mann, é filho do grande escritor Thomas Mann e teve com o pai uma relação conturbada. Nascido em Munique em 1906, Klaus Mann sofria de depressão e morreu de uma overdose de sonífero em 22 de maio de 1949, em Cannes.

Agora que li o livro, vou assistir ao filme Mephisto (1981), dirigido por István Szabó, baseado no livro (muito raramente eu assisto a filmes feitos a partir de obras literárias antes de ler as próprias). Depois faço um adendo aqui ou escrevo outro post sobre o filme.

Homem bom
Mefisto tem muitas semelhanças interessantes, em relação ao tema cultura e poder, com o excelente filme O Homem Bom, do diretor Vicente Amorim, já abordado neste blog: neste link.

2 comentários:

Leandro disse...

O livro eu não li, mas o filme, com o grande Klaus Maria Brandauer, eu vi e gostei bastante.

Eduardo Maretti disse...

Pois é, quero ver o filme, que dizem que é muito bom, mas o difícil é achar o DVD. Não achei em locadora (ainda sou do tipo de locadora)...