sexta-feira, 16 de março de 2012

A personalidade das moscas

Pensamento para sexta-feira [27]


A Drosophila melanogaster (mosca de banana)
Esta semana, li uma matéria que parece piada, mas é muito interessante: “Moscas rejeitadas ingerem álcool para afogar as mágoas”, diz o título, explicando que “estudo feito com drosófilas mostrou comportamento diferente entre insetos machos que foram desprezados e aqueles que copularam”.

E ainda: “A cena é corriqueira: o cara leva um fora e vai para o bar afogar as mágoas de um amor malsucedido. A novidade é que cientistas americanos descobriram que as moscas-de-fruta (também chamadas de drosófilas) também fazem coisa parecida quando a fêmea refuta o acasalamento. O estudo mostrou que os machos da espécie Drosophila melanogaster ingeriram mais álcool após levar um não”, em redação de matéria do iG.

A conclusão do estudo pode parecer bizarra, mas me remeteu imediatamente a uma passagem do livro O Andarilho das Estrelas, de Jack London (1876-1916), um dos mais importantes escritores norte-americanos. No livro, um condenado à prisão perpétua (depois seria condenado à morte) passa os dias na solitária e procura coisas para passar o tempo e vencer o tédio e a dor. Aprende a meditar e faz viagens astrais em que relembra suas reencarnações na Terra (London dedicou esta obra à mãe, que era espírita, enquanto ele próprio dizia não acreditar em espírito e era socialista). Antes de dominar essa técnica, porém, o narrador condenado já tinha outros passatempos. Um deles é estudar a personalidade das moscas e brincar com elas por meio de um jogo que ele inventa.

Jack London (na foto ao lado) foi um dos escritores que mais profundamente conseguiram penetrar na alma humana. E mais: ele parecia conhecer também a mente animal, por incrível que pareça. No livro Caninos Brancos (uma de suas obras-primas) ele conta a história de um lobo (já escrevi sobre esse livro – o link está abaixo no post). Claro que ele dominava como poucos a técnica narrativa. Mas é impressionante e magistral.

Abaixo, segue o trecho de O Andarilho das Estrelas em que o personagem de London descreve sua relação com as moscas.

E o tempo passava muito devagar, as horas eram muito longas. Brinquei até com as moscas; as moscas domésticas que se infiltravam na solitária, com a luz cinzenta do dia. Então, descobri que elas também tinham um instinto competitivo. Por exemplo, deitado no chão da cela, estabelecia uma linha imaginária ao longo da parede, a um metro do chão e quando elas pousavam na parede acima dessa linha, eu as deixava em paz. No momento em que elas cruzavam essa linha, eu tentava pegá-las, tomando cuidado para não feri-las. Com o tempo, elas sabiam tão precisamente como eu onde estava a linha imaginária. Quando elas queriam brincar, cruzavam a linha e, frequentemente, uma única mosca jogava comigo por mais de uma hora. Quando se cansava, ia repousar no território seguro acima da linha.
“Dentre a dúzia de moscas que conviviam comigo, havia somente uma que não ligava para o jogo. Ela se recusava firmemente a jogar e, tendo aprendido a penalidade por cruzar a linha, evitava cuidadosamente o território inseguro. Aquela mosca era mal-humorada, enfadada; como diriam os condenados, “resmungava” contra o mundo e tampouco brincava com as outras moscas. Era forte e saudável. Eu a estudei por algum tempo. Sua indisposição para brincadeiras era temperamental, não física.
“Acredite, leitor, eu conhecia todas aquelas moscas (...) Ah, cada uma tinha sua individualidade, não apenas em relação ao tamanho e às características, mas à força, à velocidade de vôo, à maneira e jeito de voar e brincar, de fugir e correr, de voar em círculos e repetir ou inverter a direção, de tocar e caminhar sobre a área proibida ou fingir tocá-la e depois tocar em outro lugar, dentro da zona de segurança (...)
“Eu conhecia as mais nervosas, as fleumáticas. Havia uma pequenina que voava furiosa em verdadeiras rasantes, disparando às vezes contra mim, às vezes contra suas companheiras (...) havia uma mosca, a jogadora mais perspicaz de todas, que, depois de descer três ou quatro vezes sucessivas na zona de perigo, conseguindo escapar de minha mão, fechada em concha, ficava tão excitada e jubilante que voava ao redor de minha cabeça em plena velocidade, rodopiando, mudando de direção, invertendo o curso, mas sempre se mantendo dentro dos limites do estreito círculo no qual celebrava seu triunfo sobre mim (...)
Para mim foi uma glória quando a 'resmungona', que nunca brincava, pousou, num momento de distração, dentro da zona proibida e foi capturada imediatamente por minha mão. Depois disso, ela ficou amuada durante uma hora.”

Leia também:

A natureza selvagem segundo Jack London

Pensamento para sexta-feira: Eu e os insetos (ou, motivos para ter medo de insetos)

A íntegra da matéria do iG

Um comentário:

Paulo M disse...

A idéia de relacionar a triste condição humana com os limites da condição de uma forma de vida primitiva, aprisionada (ou liberta) pelo instinto, me faz lembrar um tal de Gregor Samsa, (personagem do Kafka), que é o extremo do subterrâneo, da vida sob a imposição do medo e da angústia de existir. Talvez por isso muitas vezes preferimos ser meros bêbados solitários, sem a companhia de nada que de alguma maneira nos espelhe, nem dos horrores da natureza