segunda-feira, 21 de março de 2011

A questão sobre o blog da Maria Bethânia não é a Maria Bethânia

O título deste post é verdade pelo menos para mim. A Música Popular Brasileira foi um fator essencial na formação da minha geração. E nesse panteão, a baiana de Santo Amaro da Purificação, seu irmão Caetano, Chico Buarque, Nara Leão, Gilberto Gil e Gal eram os maiores (cabem outros nomes aí, obviamente)

Exceto Chico, que detestava palcos, esses grandes artistas eram míticos, para nós. Meus irmãos, meus amigos e eu tivemos o privilégio de assistir aos shows numa época em que não havia essas casas de espetáculos horrorosas e impessoais de hoje. Víamos nossos ídolos no teatro. O show “Álibi”, de Maria Bethânia, no Tuca (teatro da PUC), em São Paulo, no ano da graça de 1978, é um desses acontecimentos que nunca mais se descolam de nossas retinas tão fatigadas. Bethânia levava-nos às lágrimas com seu domínio absoluto do palco, sua voz que ecoava como a de um orixá poderoso. Nunca esquecerei o brilho dos olhos de Bethânia que eu via cintilar do fundo da escuridão onde nos encontrávamos, na plateia.

Foto da capa do disco
"Pássaro da Manhã" (1977)
A questão do blog é outra. Bethânia virou foco porque no Brasil os talentos nascem como nascem os craques de futebol, e a esmagadora maioria desses talentos está excluída pelo deus mercado. Sendo assim, o que caberia ao Estado? Por exemplo, proporcionar com seus instrumentos as oportunidades que a perversa indústria cultural veda (*) aos incontáveis excluídos. Com leis de incentivo mais transparentes, por exemplo. A Lei Rouanet está caduca e é base de um sistema semelhante a um cartório de cartas marcadas. Por isso são justificadíssimos os clamores que reverberam, na sociedade dos excluídos, pela democratização das instituições culturais no país.

Qualquer cidadão pode inscrever um projeto cultural no Ministério da Cultura para obter recursos de isenção fiscal? OK! Vá lá então apresentar seu projeto, cidadão brasileiro. A Constituição de 1988 diz expressamente em seu artigo 5°: “Todos são iguais perante a lei”. Mas qualquer cidadão mais informado sabe que essas palavras são letra morta. Com a cultura, não é diferente.

Os interesses da indústria cultural
Ao que tudo indica, a política de Ana de Hollanda serve para agradar interesses muito específicos. Uma matéria esclarecedora sobre o tema é "Quem tem medo da mudança?", de Tatiana de Mello Dias e Rafael Cabral, do Estadão. Uma política mais democratizante, que passasse pela reforma da lei dos direitos autorais, estaria desagradando altas personagens da indústria cultural e do próprio governo dos Estados Unidos. “Com os norte-americanos insatisfeitos, o Brasil poderia começar a sofrer retaliações comerciais. Por isso, o novo MinC teria decidido se alinhar à cartilha dos grandes conglomerados da música e do cinema”, informa a matéria, que ouviu Pablo Ortellado, do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação, da USP. “As pequenas ações da ministra apontam basicamente para a realização da agenda da indústria cultural”, disse ele.

Por tudo isso, e por muito mais, é que Bethânia se tornou o foco de tantos protestos e críticas. Acredito que em sua grandeza Bethânia deve saber disso.

Com todo respeito, acho totalmente enviesado o post do cineasta Jorge Furtado, em seu blog, intitulado: “A gritaria contra o blog de Maria Bethânia é uma mistura de ignorância, preconceito e mau-caratismo”. Entre outras coisas, ele atribui a “gritaria contra o blog” de Bethânia ao “preconceito contra os nordestinos”, até com piadas vindas do “gueto branco direitista no enclave paulista, enfim, os eleitores de Kassab e Serra”. O texto, que, pelo menos segundo o próprio autor, faz sucesso na internet, é inteiramente baseado em sofismas.

No meu caso, não há nenhum preconceito. Até porque, sendo paulista, eu amava Maria Bethânia e minha avó materna, a dona Milu, era baiana.

Claro, cada um defende o seu. Essa parece ser a regra a guiar os alinhados à atual ministra da cultura. Não sei se Jorge Furtado sabe (tenho quase certeza de que sim), mas a produção de cinema na Bahia existe. Só que não encontra canais de distribuição, porque não interessa à indústria cultural, cujo ideário (os fatos são cada vez mais claros) está bancando a poderosa Ana de Hollanda no MinC.

*Atualizado às 14:14

Leia também sobre o MinC de Ana de Hollanda:

O Ministério da Cultura e o compadrio

Ato de Ana de Hollanda sobre Creative Commons causa perplexidade e indignação

Ana de Hollanda deu uma canetada e se escondeu na concha

Dilma tem que pôr fim à arrogância de Ana de Hollanda

3 comentários:

Maurício Ayer disse...

Boas colocações Edu.

Acrescento que o problema das cartaz marcadas na Rouanet não é tanto a aprovação do projeto no MinC. Lá, os projetos formulados dentro das normas conseguem aprovação.

O problema é captar o recurso, pois aí quem decide quem é que vai existir na cultura brasileira são os diretores de marketing das grandes empresas, que entendem de visibilidade mas não sabem nada de qualidade e valores culturais.

Na prática, quem ganha dinheiro são os grandes projetos que veiculam grandes marcas (com dinheiro federal, sem que a empresa tire um centavo do bolso), e os pequenos fora dos grandes mercados continuam na base da cultura compartilhada e amadora.

Em resumo, concordo contigo.

Eduardo Maretti disse...

É, Maurício. Tava me incomodando um pouco a falta de observação da velha frase filosófica: "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa". Porque se é verdade o que observamos sobre a situação do MinC etc etc, também não é o caso de desrespeitar Bethânia, né, ressalvando, claro, a discordância com os tais sofismas que cito no post.

Tinha faltado o link da matéria citada dos jornalistas do Estadão. Agora está lá.

Abs

Mayra disse...

Bem esclarecer seu texto, Edu, e bem oportuno também lembrar que a Bethânia é uma baita artista e merece ser tratada com seriedade. O buraco é bem mais embaixo, como lembrou o primeiro comentarista do seu texto.