terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Parabéns, AI-5


Oswaldo Corneti/Fotos Públicas
Analfabetismo político e fascismo


Domingo, 13 de dezembro de 2015, eu e uma companheira fomos a um bar tomar uma simples cerveja. Mas para essa cerveja tínhamos uma motivação especial: espairecer.

Enfim, sentamos à uma mesa na calçada do bar para tomar a cerveja. O bar era um galpão muito amplo com uma dezena de mesas de sinuca. Ao nosso lado havia uma mesa com um casal. Notamos que eles estavam discutindo. Solidarizamo-nos. Em algum momento, puxamos conversa para tirar o foco da discussão deles. Conversamos um pouco e, após a menina dizer angústias universitárias da sua vida, acabamos entrando em política; afinal, ao nosso lado estava a Universidade Federal do ABC, de Santo André, que vocês sabem o que significa. A menina havia dito que, se conseguisse fechar a última disciplina deste ano, faltariam dois anos para terminar sua faculdade.

Dissemos que precisávamos torcer para Dilma não cair, para que ela pudesse terminar a faculdade sem maiores dificuldades. Eles discordaram, dizendo que o direito à universidade estava garantido e que não tinha a ver com a mudança de governo. O rapaz, visivelmente sem problemas financeiros, filho de um médico (ao contrário da moça, de origem humilde), disse que até seria bom se Dilma saísse, para que o País voltasse à estabilidade econômica. Até então o papo estava argumentativo. Falamos das bolsas da universidade e que era importante o governo se manter para garantir as bolsas. A menina discordou, reiterando que as bolsas estariam garantidas independentemente do governo. Mais adiante, falamos sobre a intenção do deputado Ricardo Barros (PP-PR), relator do Orçamento, de reduzir os investimentos no Bolsa Família, o que tiraria 23 milhões de pessoas do programa e devolveria 8 milhões à extrema pobreza. O deputado afirma que o governo não tem recursos para manter o Bolsa Família. O governo discorda veementemente. Ou seja, o relator trabalha para maior caos no País. Enfim, esse papo, apesar de ser o mesmo, é outro.

Toquei no assunto Bolsa Família, a menina se interessou deveras pelo assunto e começou uma série de ataques. Disse que tinha morado na periferia e que lá havia um monte de "buchudas", se referindo às mulheres que "têm filhos para receber Bolsa Família". Discordei, argumentando que isso não só era uma grande minoria das mulheres que recebem recursos do programa como este era também um direito devido ao povo, considerando os séculos de flagelo a que o povo recém-democratizado foi submetido no Brasil, especialmente negros e índios. Bom, nesse momento ela começou a levantar a voz, dizendo que eu não tinha morado na periferia, então não poderia saber. Me disse que quando eu morasse na periferia a gente conversava. Eu disse a ela que conhecia muitas pessoas que, como ela, haviam morado na periferia e pensavam diferentemente dela, mas a essa altura ela já não ouvia mais. Disse que tem um primo que está preso e que sua mulher recebe dinheiro do governo, enquanto sua mãe se mata de trabalhar.

Enfim, aqueles argumentos que já conhecemos. Disse que foi a única de sua família que estudou e entrou na universidade. Eu respondi que não é bem assim, que as coisas têm suas razões, que ela era uma exceção e que a gente não podia pensar dessa forma, ou relegaríamos à pobreza sem solução grande parte da sociedade. Disse que, segundo esse pensamento, "uma criança que cata caranguejo no mangue tem a mesma chance de entrar na universidade que ela". Bom, ela já não ouvia mais e bradava histérica e repetitivamente seus argumentos. "Quando você morar na periferia você vem falar comigo". Depois de uma troca calorosa de argumentos, eu disse que ela estava histérica e que não dava pra conversar. Disse que segundo a perspectiva dela podíamos afundar a África no mar. Nesse momento um pessoal conhecido de uma outra mesa já gesticulava para desistirmos da conversa. Ainda houve tempo para minha companheira chamá-la de fascista. Então nos retiramos da nossa mesa e fomos conversar com o pessoal da outra mesa, em que havia três conhecidos sabidamente de esquerda, entre os quais um boliviano, que frequentemente canta canções revolucionárias.

Bom, conversamos um tempo com eles. Dois dos que estavam nesta mesa, junto com os três que conhecíamos, começaram uma conversa com o casal com o qual havíamos discutido. Não ouvi o que eles conversaram, mas foi uma conversa sem exaltações. Quando estávamos para ir embora, quase uma hora depois da discussão, conversei rapidamente com um sujeito, que havia conversado com o casal. Ao dizer que eu defendia o governo, ele me disse que eu era direitista e racista. Ele era mulato. Eu disse efusivamente que ele não sabia o que estava dizendo e que eu conhecia mais da cultura negra do que ele e, novamente, retirei-me. Coloquei meu copo no balcão e fui no banheiro.

Quando voltei, a menina com a qual havíamos discutido passou a meu lado e deu uma sinistra risada de bruxa, literalmente, e "foi no banheiro". Eu parei ao lado de minha companheira, no balcão, para pegarmos uma cerveja e ir embora. Quando ela voltou, parou ao meu lado, deu a mesma risada e começou a discutir insanamente comigo. Não entendi aquilo e disse que não estava falando com ela. Ela continuou. Era impossível ficar indiferente, era impossível não responder, pois ela havia ido até mim para isso. Ameacei sair de perto dela mas ela se pôs na minha frente, falando alto coisas que eu sinceramente não lembro. Disse pra ela sair de perto de mim. De repente, sem aviso, eu estava no chão. Tomei um tombo de costas que não afetou minha coluna por sorte, mas me deixou desnorteado, sem ar e sem reação. Rapidamente levantei e minha companheira também já estava no chão, com a tal menina em cima dela e um bolo de gente tentando apartar. Alguns outros seguravam o filho do médico, que não estava satisfeito. Procurei saída para evitar continuar o quebra-pau. Quando consegui encontrar minha companheira em meio à confusão, disse que tinha perdido meus óculos. Ela rapidamente o achou, torto e quebrado, e fomos embora.

Chegamos em casa transtornados e doloridos. Ela com arranhões no rosto e esfolamentos num dos braços, e eu com uma forte dor nas costas e esfolamento nos braços. Recuperamo-nos do susto e então tive a certeza de que o que eles tinham conseguido era um incentivo a uma militância mais efetiva.

Choramos pensando no que Lula e especialmente Dilma passaram e ainda passam em suas vidas para fazer o que fizeram e ainda fazem pelo povo do Brasil e do mundo. Essa é a luta, que precisa evoluir. Coloquei Hasta siempre (comandante Che Guevara), de Carlos Puebla, e derramei mais algumas lágrimas, dessa vez de alegria, por saber que existiram pessoas nesse mundo que deram suas vidas por esta causa. Parabéns, fascistas. Parabéns, AI-5, foi um aniversário a caráter.  

7 comentários:

Unknown disse...

Tempos difíceis, em que ter opinião é quase um crime.

Vitor disse...

Tempos difíceis, em que ter opinião é quase um crime.


"Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer...!

marco antonio ferreira disse...

O próximo pode ser você.
Não são tempos difíceis, todos os tempos, sic, são muito dificeis, mas é que para alguns são mais. Agora é tempo de se identificar, acabou o mito, o Brasil é real, e a realidade é que o Brasil é um país escravista e racista. O Brasil, nos meus tempos de escola, 40 anos atrás, dispugtava com a Africa do sul como dos países mais desiguais do mundo. As posições: décimo e nono, não lembro quem era dez, e quem era o nove, mesmo porque trocavam de posição todo anos, às vezes nove àsvezes dez. As Madamas brasileiras disputavam com as madamas apartheid quem tinha a casa mais limpa e lustrada.Ou melhor, quem tinha melhores escravos.Mas eu era jovem e não admitia que meu país, sic, fosse assim escrôto... mais dia menos dia a verdade chega, dói, mas é melhor que viver enganado.
De toda maneira, e ainda assim, muita gente prefere virar a cara, só que o Gabriel não vira.

Eduardo Maretti disse...

Eu acho que as coisas mudaram, mesmo que aos tropeções, digamos assim, desde o fim da ditadura. Eu acho que "o país escravista e racista", o país da direita (ignorante ou de má-fé), que votou em Aécio e que sai por aí posando de fascista, como esses do relato, são barulhentos, mas são minoria. São perigosos, mas são minoria. Se não fossem, Dilma não tinha vencido as eleições, ou já estaria sendo derrubada. Mas não está. Graças ao STF.. hehe, por enquanto...

De modo que não acho que essas forças passarão. O jogo é duro, o PT não vai governar pra sempre, mas essa direita golpista e agressiva (essas do relato) não leva.

Muita inclusão já foi feita. Existem sementes (por ironia, principalmente ao dar acesso a pobres e negros às universidades). As sementes vão gerar frutos. Eu não estou pessimista...

Gabriel Megracko disse...

O trabalho não para. Conversando com uma amiga que está na Federal da Bahia, ficou ainda mais evidente o tamanho e a beleza desse trabalho. Essa luta que se trava agora decidirá os rumos do Brasil e da América Latina por muito tempo. Não irei recostar minha cabeça no travesseiro com remorso, vendo o povo fodido sem que eu tenha feito o que posso. Ah, isso não! Pensando todos assim, não haverá derrota. "Hasta la victoria siempre!"

Paulo M disse...

Essas pessoas estão cada vez mais raivosas. Parece que sentem que algo em suas verdades desaba, como se seus inconscientes olhassem ao espelho e dissessem: “Faça alguma coisa, você não pode ter mais e ser igual.” É o desabamento de uma moral sustentada por séculos, e só isso já é um grande passo. O ‘problema’ é que as coisas vão afunilando (e não só no Brasil), e o resultado é imprevisível. O ódio também se afunila nas ruas. Acho que uma hora a máscara cai, seja hoje, seja amanhã...

Eduardo Maretti disse...

Essa cena no link abaixo explica um pouco por que estou otimista. É possível até mesmo entender (entre 1 e 2 segundos do vídeo) Dilma se comunicar com o segurança, tenso, a sua direita, como quem diz: "relaxa, não tem problema" (mas o gesto é muito rápido, nem daria tempo de pronunciar tal frase).

Dilma caminha com segurança, e a cena me lembra "A Imortalidade", de Milan Kundera.

As pessoas que vestem verde-amarelo e vão pra Paulista com seus cachorrinhos e suas famílias não têm ideia do que essa cena significa.

Não sei se precisa de senha do facebook pra ver, mas o link é esse:

https://www.facebook.com/enioverri/videos/729270463869699/