sábado, 13 de maio de 2017

Um sábio deixou a terra


Marcos Santos/USP Imagens


Por Ulisses Capozzoli, no Facebook – via Bem Blogado


O país que não é pródigo em singularidades perde hoje Antonio Candido.

Dele, vou me lembrar sempre que partilhamos uma fatia de bolo de fubá.

Num café distante, num encontro que não me lembro mais sobre o que.

Ofereci a ele, que me pareceu interessado, a única fatia sobre a mesa.

E ele me propôs, com a generosidade & afeto que marcaram toda sua longa vida:

─ Vamos dividir?

Eu ainda insisti, numa atitude que me pareceu acertada:

─ O senhor pode se servir, por favor… ─ E ele:

─ Não. Vamos dividir, vamos dividir entre nós dois…

Aceitei, deixando que ele fizesse a divisão.

Foi o que ele fez, com um sorriso delicado, que me pareceu prazeroso.

A partilha. O ato que marcou toda sua longa vida.

A partilha do essencial para os humanos:

cultura, afeto, solidariedade &, claro, a inteligência refinada.

Além do pão, naquela tarde distante, uma fatia de bolo de fubá.

Marcel Proust, com sua escrita que desce ao nível subatômico, & que antecipou a existência de quarks como constituintes elementares da matéria, retirou toda sua enorme obra do perfume de uma “Madeleine”.

Eu, que cheguei ao mundo num pontinho das Minas Gerais, devo fidelidade a uma fatia de bolo de fubá.

Como forma de expressar gratidão a esse homem “imprudentemente poético”, num empréstimo feito junto a Walter Hugo Mãe.

Esse homem delicado, mas seguro como árvore de pau-ferro, o autor de “Parceiros do rio bonito”, investigação do caipira paulista & a transformação de sua realidade.

Antônio Candido, que nasceu no Rio de Janeiro, então a capital do Brasil.

Com abrangência fora de compreensão do que agora é a realidade.

Investigando as raízes de São Paulo.

Rio de Janeiro, Minas Gerais & São Paulo, durante longo tempo, uma única província.

Que o ouro uniu & separou.

Minas Gerais, uma invenção das bandeiras paulistas.

Uma ruptura dramática a partir da Guerra dos Emboabas.

Coisa que não interessa a mais ninguém.

Mas, que marca a ferro & fogo a realidade mais dura que se vive agora.

Um ancestral de Eduardo Cunha, o igualmente camaleão & corrupto, Manuel Nunes Viana.

Antonio Candido, em sua passagem, aparece identificado como “sociólogo”.

Mas sociologia é uma carga pontual.

Antonio Candido foi um campo magnético inteiro, atuando sobre um vasto
território da cultura nacional.

Já tinha certa idade, quanto partilhamos nossa fatia de bolo de milho.

Uma das delícias das Gerais, deixadas por lá pela “gente paulista”.

Tinha ele aquela auréola de luz, que só um observador atento percebe.

Antonio Candido parte dessa terra num momento de enorme desconforto.
& nos deixa com um sentimento de orfandade abissal…


Um comentário:

Paulo M disse...

Bonito texto. Me faz pensar que sou um "observador atento", pois antes mesmo de ler o post ia pôr um comentário descrevendo Antonio Candido com os adjetivos empregados pelo Ulisses. Antonio Candido escapou dos padrões da frieza teórica. Sensível, poético e inteligente. "Antonio Candido parte dessa terra num momento de enorme desconforto.
& nos deixa com um sentimento de orfandade abissal…"