sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Os caminhos da liberdade de Jean-Paul Sartre [2] – Sursis


A bela edição do Círculo do Livro
Tinha eu meus 20, 21 anos, quando li Sursis, o segundo livro da trilogia  Os Caminhos da Liberdade, de Jean-Paul Sartre. Nunca tinha lido Sartre e não me preocupei com o fato de A Idade da Razão ser a primeira obra da trilogia (nem lembro se sabia disso).

Só depois (quando somos jovens não temos a preocupação com o passar do tempo e a ordem das coisas muitas vezes nos é indiferente) é que fui ler os romances pela ordem, até chegar à terceira parte, Com a Morte na Alma. E só depois ainda li uma frase do filósofo e romancista francês: “eu sou os livros que li”, uma sentença bem francesa, diga-se, mas que me calou fundo, pois eu poderia dizer que não seria exatamente o que sou se não tivesse mergulhado nessa profundíssima discussão em torno do espírito humano (particularmente europeu) que Sartre constrói com sua trilogia.

O ambiente, em Sursis, não é mais apenas contaminado pelos sinais longínquos da guerra: a Segunda Guerra Mundial já é iminente na tensão crescente do romance, não apenas na narrativa e diálogos, mas na própria estrutura e no encadeamento do texto. As ideias, diálogos e a consciência mesma dos personagens muitas vezes se misturam num mesmo período, às vezes na mesma frase, como se a consciência europeia da conflagração fosse se materializando paulatina e implacavelmente na mente não do professor Mathieu, de sua amante Marcelle, da jovem Ivich, mas de todos eles, como se eles fossem sendo possuídos por uma consciência maior, a consciência da Europa.

Sursis é, em termos de linguagem, o mais complexo romance da trilogia, talvez o melhor. No livro, Sartre escreve uma das mais belas passagens sobre a ilusão do homem do século XX, a ilusão do homem que, terminada a Primeira Guerra, achou que tinha conquistado a paz: “Anos e anos de paz futura se haviam depositado previamente nas coisas (…) pegar o relógio, um trinco de porta, a mão de uma mulher, era tomar a paz nas mãos. O após guerra era um começo. O começo da paz (…) O jazz era um começo, e o cinema (…) E o surrealismo. E o comunismo. O tempo, a paz, eram a mesma coisa. Agora esse futuro está aqui, a meus pés, morto (…) Olhava os vinte anos que vivera serenos (…) e os via agora como tinham sido: um número finito de dias comprimidos entre dois altos muros sem esperança (…) que figuraria nos manuais de história sob a denominação de ‘Entre duas guerras`”.

É com um estranho fervor, como diria Borges, que alguns livros persistem em nossa memória. Sursis, do mestre Sartre, para mim, é um deles. Um livro que, além de tudo, me provoca uma estranha sensação de atualidade. Espero que não estejamos hoje todos nós vivendo uma grande ilusão como a dos personagens da Europa do entre-guerras de Sursis.

Leia também:

Os caminhos da liberdade de Jean-Paul Sartre [1] – A idade da razão

Sartre resiste ao século

2 comentários:

Anônimo disse...

O texto em si é muito bom, mas é difícil de ler exatamente por as cenas estarem todas misturadas, necessitando se realocar numa nova situação todo momento e perdendo um pouco a sequência com um número grande de personagens. A Idade da Razão e Com a Morte na Alma é escrito de uma maneira mais agradável de ler e tão bom quanto.

Eduardo Maretti disse...

A intenção da narrativa do Sartre, em Sursis, é essa mesma. Como eu disse no post, a narrativa mostra a consciência europeia como que "se materializando paulatina e implacavelmente na mente não do professor Mathieu, de sua amante Marcelle, da jovem Ivich, mas de todos eles, como se eles fossem sendo possuídos por uma consciência maior, a consciência da Europa". Na minha opinião, como escrevi, Sursis é, em termos de linguagem, o mais complexo e melhor romance da trilogia.