quarta-feira, 2 de março de 2016

A Bolívia após dez anos de Evo Morales


Por Tatiana Fernández *

Seria correto afirmar que a Bolívia mudou muito com Evo Morales. Mas as razões das mudanças também são devidas a fatores regionais e globais que vão além da ação dos governos.


R Martinez c./ABI
Evo Morales é presidente da Bolívia desde 22 de janeiro de 2006

É como nas ondas gravitacionais. As forças que se movem produzem ondas que chegam a toda parte no espaço como no líquido. Na sociedade líquida essas ondas são mais nítidas, mas sempre funcionaram assim. 

Na arte, as “ondas gravitacionais” do que acontecia na Europa demoravam a chegar à América do Sul, "tudo aqui chega mais tarde", se dizia. E a gente protestava. Mas não nos perguntávamos se nós produzíamos eventos capazes de provocar ondas gravitacionais. Os eventos que aconteciam por aqui eram bloqueados, diminuídos, invisibilizados. A Bolívia de Morales provoca “ondas gravitacionais” que hoje chegam em outros lugares.

A confluência de eventos, entre eles o da internet, provocou mudanças em cadeia em toda parte. Evo Morales é parte de um momento de mudança e de visualização dos conflitos. Isso significa que ele é tanto um produto das lutas centenárias pela emancipação como produto dos abusos de poder dos colonizadores e neocolonizadores. Morales é produto da revolta.

Entendo que todo evento tem vários lados. Não podemos colocar tudo dentro de uma categorização só. A afirmação mais simples e verdadeira pode parecer um pensamento dadaísta: a Bolívia de Morales mudou em muitos aspectos, para bem e para mal, mas a Bolívia de Morales não mudou em muitos aspectos, para bem e para mal.

As cidades cresceram com o crescimento da economia. Há uma participação enorme dos indígenas nas decisões, mas também há indígenas que são barrados dessa participação, ou, que protestam contra as decisões que são tomadas porque afetam suas comunidades, como é o caso do TIPNIS (ver aqui toda a história).

A indústria da construção cresceu, os carros, as lojas e os luxos se multiplicaram. Chegaram os shoppings, o consumismo e tudo que a globalização provoca. Bom? Ruim? Depende do quê e para quem. Soube que o McDonald’s está planejando voltar. Muita gente gostou e muita outra achou uma desgraça.

Mas muita gente concorda que as cidades do altiplano mudaram seu visual. A cidade de La Paz agora tem um aspecto futurista com as cabines do Mi Teleférico, que transitam pelos ares de uma montanha a outra. Como um metrô aéreo.  E é um sistema de transporte público.


Linha Vermelha do Mi Teleférico conecta La Paz e El Alto/Foto: en.wikipedia.org

A maior cidade satélite altiplânica, El Alto, que antes era toda de tijolo aparente, agora veste as mais extravagantes fachadas e interiores que competem com Gaudí nos projetos do arquiteto Freddy Mamani. É o estilo "Neo-Andino", também conhecido como "cholet" (de chola e de chalet), que exibe o orgulho das raízes indígenas, revela um gosto híbrido entre a tradição e as novas tecnologias e evidencia a riqueza econômica dos comerciantes indígenas. Detalhe: as garagens dos prédios não são para carros, são para caminhões; o primeiro andar é para comércio, o segundo salão de festa, o terceiro e quarto apartamentos para alugar e o último para construir a casa do dono do prédio. Uma casa sobre cada edifício.


Freddy Mamani, Fachada de edifício em construção. Foto: http://blog.salinasanchez.com


Freddy Mamani, Salão de festa em El Alto/Foto: www.dara.org.ar

Vi que as escolas públicas estão melhores, os estudantes têm uniformes mais bonitos, mais dignos.  Recebem um bônus anual (não mensal, como escreveu algum jornalista brasileiro, ver aqui: Portal Unesco) para estudar sem grandes dificuldades. Há uma reforma educativa em marcha que preza uma educação produtiva e anticolonizadora. Mas há questões dentro da própria reforma que são conservadoras e até de matriz colonial. É o caso da arte na educação, que é dirigida à produção, mas sempre conservando a visão contemplativa e técnica da arte e do artesanato. E agora ,para dar aula na educação básica, seja pública, privada ou de convênio, é necessário ser graduado da Escuela Superior de Formación de Maestras y Maestros, a Normal de hoje, ou passar por uma formação de um ano no modelo educativo sociocomunitário produtivo que promove o governo. Assim, eu, como artista licenciada, não poderia dar aula. Por isso, dentro da própria mudança, que é boa, muitas coisas não mudam ou mudam para pior.

Viajando no "trufi" (transporte de carro que faz um percurso definido, diferente do táxi que vai onde quiser e do minibus e ônibus em que vai muita gente) escutava o rádio que continua tocando música pop dos anos 60 e 70 (Los Iracundos, Palito Ortega, Rafael, Leonardo Fabio, etc). Nos anos 80 isso parecia com o problema de que "tudo chega mais tarde". Mas nos 90 cheguei a pensar que essas músicas eram as preferidas dos bolivianos. Agora, em 2016, me parece que há algo na Bolívia que permite conservar certas práticas que, em outros lugares, não se consegue devido à força das ondas gravitacionais do que acontece no mundo. Algo sempre é diferente na Bolívia.

Muitas coisas mudaram para bem e para mal, como em todo lugar. Mas na Bolívia muitas coisas ainda teimam em permanecer iguais, indefinidamente... Isso também é bom em muitos aspectos, mas em outros, como a corrupção, que não mudou quase nada, não.

A única agente de trânsito, mulher, "a choca" (loira para os bolivianos, ela é loira pintada) que era conhecida como a mais temida agente em La Paz, porque não aceitava nenhuma insinuação de corrupção, desapareceu das ruas. Dizem que enviaram ela a Santa Cruz e lá ela foi atropelada por um carro; que a polícia, integralmente constituída por homens de origem indígena, nem pagou sua internação e suas cirurgias. As pessoas esqueceram dela. Ninguém queria um agente não corrupto no departamento do trânsito, não é?

Uma tarde, uma jovem artista boliviana me contou dos seus planos com um grupo de artistas jovens para mudar a situação da arte na Bolívia. Parecia que eu estava me escutando, me vendo no começo dos anos 90. Fiquei pensando em quanto as coisas não mudaram, mas isso também é devido à roda da vida que volta novamente ao mesmo ponto. O que mudou então na Bolívia? Muita coisa mudou para o bem de muitos cidadãos, mas isso não significa que chegamos ao paraíso. Mas quem diz que queremos sempre chegar ao paraíso, não é?





*Tatiana Fernández, artista plástica, doutora em Arte e professora do Departamento de Artes Visuais do Instituto de Arte da Universidade de Brasília (UnB)

Nenhum comentário: