Em uma entrevista de 2001, o escritor me falou o seguinte sobre o quadro Abaporu, de Tarsila do Amaral: "é a pintura mais feia do mundo"
Quando Jorge Amado morreu, em agosto de 2001, o jornalista chileno então radicado no México Enrique Portilla me pediu uma matéria para o jornal Reforma, do México (Reforma.com), repercutindo a morte do grande escritor baiano junto a intelectuais e colegas brasileiros de literatura. A matéria ("El heroe de Bahia"), que deveria conter a opinião dessas personalidades sobre a importância da obra do autor de Gabriela, Cravo e Canela, está até hoje no site do jornal, mas infelizmente só para assinantes do impresso mexicano.
Entre outras personalidades, como Lygia Fagundes Telles, Moacyr Scliar e Autran Dourado, entrevistei Millôr Fernandes para a matéria. Millôr era o tipo do cara que você podia tentar entrevistar abordando-o num evento, num lançamento de livro, se conseguisse que ele o atendesse, ou valendo-se de um amigo ou conhecido comum. Em outras circunstâncias, era impossível. Eu tinha o telefone da casa dele. Sabedor de sua fama de um homem que não dava entrevistas facilmente, muito menos por telefone (ao qual raramente atendia), liguei meio sem esperança de obter uma declaração. Mas, eis que ele atende!
– Alô?
– Millôr?
Ele disse que sim, era ele. O primeiro desafio estava vencido. Millôr atendera o telefone! O segundo, talvez mais difícil, pensei, seria conseguir as aspas para minha matéria. Fui o mais direto possível, pois uma falha, um gaguejo, um vacilo teria sido suficiente para ele me dispensar. Além de objetivo, tentei agradar seu ego:
– Millôr, sou o jornalista Eduardo Maretti. Estou fazendo uma matéria para o jornal Reforma, do México, e preciso da opinião de pessoas importantes da cultura e da literatura brasileiras sobre Jorge Amado.
Num primeiro momento ele quis recusar. Disse que gostava de A Morte e a Morte de Quincas Berro D’água (1959), deixou transparecer que não era nem um pouco fã de Amado e completou dizendo que não queria julgar um autor que havia morrido e que, portanto, não lhe poderia responder. Entendi que, ao afirmar que Jorge Amado não poderia retrucar, ele não teria nada muito elogioso a dizer, e, evitando irritá-lo (e um jornalista irritá-lo não era nada difícil), usei de rodeios para tentar uma opinião mais clara.
Millôr era de uma inteligência feroz e fulminante e acho que gostou de uma interlocução que, suponho, ele entendeu que deliberadamente fazia seu jogo, e, enfim, falou algo bastante claro sobre o que pensava do escritor baiano, mas, como era de seu estilo, fugindo ao lugar-comum, por meio de uma associação com a pintora modernista Tarsila do Amaral. “Uma vez escrevi que Abaporu, o quadro de Tarsila do Amaral, é a pintura mais feia do mundo. O quadro se transformou num mito. Jorge Amado já faz parte da mitologia brasileira; não se discute. É inútil discutir”.
Enfim, tinha eu para minha matéria o depoimento de Millôr, heroicamente obtido por telefone!, irônico, metafórico, por assim dizer totalmente Millôr, e em que era cristalina sua falta de amor, digamos assim, pela obra de Jorge Amado. Ou, por outras palavras: ele não partilhava da unanimidade em torno da literatura do escritor.
Do que eu discordo, pois acho a literatura de Jorge Amado de uma grandeza inigualável na literatura brasileira.
xxxxxx
"A tragédia vem embutida em piadas"
No meu livro Escritores (pela editora Limiar, que reúne 43 entrevistas com autores brasileiros e internacionais organizadas a partir de material produzido para Revista Submarino, hoje extinta), tem também uma entrevista com Millôr Fernandes, obtida a fórceps pela repórter Camila Claro quando do relançamento de seu Livro Vermelho dos Pensamentos (Ed. Senac). A entrevista – intitulada "A tragédia vem embutida em piadas" – fazia parte de uma edição especial sobre os 20 anos da morte de Nelson Rodrigues, por isso o autor de Vestido de Noiva é o foco.
Segue um trecho da improvisada e quase telegráfica entrevista (adoro entrevistas improvisadas) de Camila com Millôr:
Como e quando você conheceu Nelson Rodrigues?
Eu era menino (13 anos) quando comecei a trabalhar na revista O Cruzeiro, Nelson teria uns 12 mais do que eu. Vivemos horas, diariamente, dentro e fora da redação. Só muitos anos mais tarde nos separaríamos, mas nunca deixamos de nos ver, ocasionalmente.
Você se lembra do apelido “Filósofo” ou outros que Nelson teria dentro da redação de O Globo?
Não. Nem nunca soube desse. E [olha que] mesmo quando não estava com ele, até o fim de sua vida, sabia dele diariamente por amigos comuns.
Você se lembra de Nelson como alguém de hábitos religiosos?
Não que visse.
Na biografia O Anjo Pornográfico, Ruy Castro escreveu que as três irmãs de Nelson eram apaixonadas por você. É verdade?
Ruy é um excelente ficcionista. Pergunte a ele.
Ruy conta também que, na redação de O Cruzeiro, você e o Hélio Jaguaribe aproveitavam as saídas de Nelson para adicionar algumas linhas a seus textos. Ele não percebia essas malandragens (...)?
Claro que percebia. E não se importava. Quem escrevia como Suzana Flag [pseudônimo de Nelso Robrigues] não pensava estar escrevendo um texto irretocável. Nossa vida era uma brincadeira permanente. A tragédia inúmeras vezes vem embutida em piadas.
Segue um trecho da improvisada e quase telegráfica entrevista (adoro entrevistas improvisadas) de Camila com Millôr:
Como e quando você conheceu Nelson Rodrigues?
Eu era menino (13 anos) quando comecei a trabalhar na revista O Cruzeiro, Nelson teria uns 12 mais do que eu. Vivemos horas, diariamente, dentro e fora da redação. Só muitos anos mais tarde nos separaríamos, mas nunca deixamos de nos ver, ocasionalmente.
Você se lembra do apelido “Filósofo” ou outros que Nelson teria dentro da redação de O Globo?
Não. Nem nunca soube desse. E [olha que] mesmo quando não estava com ele, até o fim de sua vida, sabia dele diariamente por amigos comuns.
Você se lembra de Nelson como alguém de hábitos religiosos?
Não que visse.
Na biografia O Anjo Pornográfico, Ruy Castro escreveu que as três irmãs de Nelson eram apaixonadas por você. É verdade?
Ruy é um excelente ficcionista. Pergunte a ele.
Ruy conta também que, na redação de O Cruzeiro, você e o Hélio Jaguaribe aproveitavam as saídas de Nelson para adicionar algumas linhas a seus textos. Ele não percebia essas malandragens (...)?
Claro que percebia. E não se importava. Quem escrevia como Suzana Flag [pseudônimo de Nelso Robrigues] não pensava estar escrevendo um texto irretocável. Nossa vida era uma brincadeira permanente. A tragédia inúmeras vezes vem embutida em piadas.
4 comentários:
Edu, que saudades de visitar seu blog! Pena que cheguei aqui com a triste notícia da morte de nosso amado Millôr. Mas foi bom, por outro lado, porque sua história da entrevista está uma delícia. Vou reler agora a outra entrevista com ele, a da Camila no Escritores. Engraçada essa manobra do acaso: a morte do Millôr na sequência da do Chico Anísio, de quem, confesso, não gostava, não. Vi muito os programas dele na TV, conheço aquelas personagens históricas todas - a Salomé, o Pantaleão etc. Mas depois pequei antipatia por ele. Será que foi porque ele casou com a Zélia??!! Enfim, conjecturas bobas. O fato é que a gente perdeu um baita escritor, e isso é sempre um espanto, é como se essas pessoas não devessem morrer nunca.
Esse negócio de não gostar do Abaporu quer me parecer recalque de carioca com as coisas dos paulistas modernistas.
Eu achava o Millor meio elitista. E esse lance dele não gostar do Jorge Amado reforça a minha impressão a este respeito.
Bem-vinda de volta, Mayra! Já estava até preocupado com sua ausência tão prolongada!, rs. Sobre o Chico Anísio, era um baita artista. Seus tipos, sua criatividade e seu talento como ator são inquestionáveis. E nem só era bom de humor. Sua atuação no filme Tieta, de Cacá Diegues, por exemplo, é impressionante. Acho que sua enorme identificação com a TV Globo é que causa essa antipatia... Enfim, de fato, é uma ironia do acaso mesmo que ele e Millôr tenham morrido num espaço de quatro dias...
E, Leandro, eu não vejo nem um pouco, mas nem um pouco mesmo assim como você diz.
A inteligência de Millôr era muito luminosa para que ele tivesse a visão sobre arte (de que sabia como poucos) obscurecida por bairrismos toscos.
E, de resto, vou te confessar uma coisa. Quando conversei com ele conforme narrado no post, fiquei feliz quando soube sua opinião sobre o Abaporu. Sim, porque eu também acho, sempre achei esse quadro um horror, um verdadeiro monumento ao mau gosto. Pensei, então, comigo mesmo: puxa, mas pelo menos um homem inteligente, um puta artista, concorda comigo! E eu sou paulista da gema. Invertendo as coisas, não é porque sou paulista que sou obrigado a gostar de porcaria mitificada. Gosto muito mais de Anita Malfatti. Mas... Lembro de ter ficado super decepcionado certa vez, há muitos anos, quando vi uma exposição e descobri que mesmo Anita está muuuito longe de ser original. Os principais quadros dela são verdadeiras cópias estéticas de artistas fauvistas europeus como Henri Matisse e Fernand Léger, por exemplo. Já Tarsila é ruim e de mau gosto mesmo, e ponto. Acho isso, por polêmico que seja.
Quanto a Jorge Amado, gosto muito. Mas ninguém é obrigado a gostar. Amado é um escritor de que muitos intelectuais na maior universidade do país, a USP, não gostam, e está aí a Mayra, que tem longa trajetória na universidade, que pode confirmar o que estou dizendo.
abraços
Bom, Edu... Digamos que, se você não chegou a conhecer pessoalmente o Millor numa intensidade em que poderia chamar de amizade, teve um contato com a pessoa e com sua obra fatalmente muito mais intenso que eu.
Por isso, darei crédito às experiências de alguém que "conhece porque já esteve lá", como diria o Silvio Luiz, e seguirei considerando a possibilidade das minhas restrições ao falecido, acima mencionadas, não passaram de distorções de uma visão unidimensional e distanciada, agravada por gostos pessoas que não coadunam com os dele e com os seus em alguns destes aspectos.
Daremos ao falecido, então, o benefício da dúvida enquanto matutamos mais a respeito. Me parece justo.
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