quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A imprensa pauta o Judiciário - um episódio didático do círculo vicioso



Valter Campanato/ABr


Uma notícia que todo mundo deu e um detalhe que poucos notaram.

A notícia que todo mundo deu: o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, derrubou na terça-feira (11) uma decisão do ministro Ricardo Lewandowski proferida no período de recesso do STF e das férias de Barbosa em janeiro, quando Lewandowski foi presidente em exercício da “mais alta corte” do país. Na decisão que Barbosa suspendeu, Lewandoswski determinava à Justiça do Distrito Federal a análise de pedido de trabalho externo, feito pelo ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu, que cumpre pena em regime fechado (ilegalmente, já que foi condenado ao semiaberto) em Brasília. O pedido de análise do benefício de trabalho externo de Dirceu foi suspenso pela Vara de Execuções Penais do Distrito Federal com base em nota do jornal Folha de S. Paulo de 17 de janeiro. Ao suspender a determinação de Lewandowski, o todo-poderoso Joaquim Barbosa disse que a decisão do colega foi “atropelamento do devido processo legal, pois deixou de ouvir, previamente, o Ministério Público Federal e o juízo das execuções penais, cuja decisão foi sumariamente revogada”.

O detalhe que poucos notaram: A decisão de Lewandowski de 29 de janeiro suspensa no último dia 11, em que ele mandava a Justiça analisar o pedido de Dirceu pelo benefício do trabalho externo, foi suspensa pela Vara de Execuções Penais do Distrito Federal com base, vejam bem (caso o leitor não tenha notado o detalhe no parágrafo acima), em nota da coluna “Painel” do jornal Folha de S. Paulo de 17 de janeiro. A nota da Folha “denunciava” que Dirceu teria usado um celular, infringindo assim normas do sistema penitenciário, prejudicando o pedido do direito ao trabalho externo.


Nota do "Painel" da Folha de S. Paulo de 17 de janeiro

Segundo Lewandowski, as investigações concluíram pela “absoluta falta de materialidade do fato" [o uso do celular por Dirceu] sugerido pela nota de jornal. A “veracidade” da nota da Folha de S. Paulo foi desmentida pelas investigações do Núcleo de Inteligência do Centro de Internamento e Reeducação do sistema penitenciário, disse Lewandowski na decisão que o presidente da "suprema corte" revogou.

Em resumo, é um episódio menor no contexto da Ação Penal 470, mas é muito didático para demonstrar a engrenagem que perpassou todo o processo do chamado “mensalão”: a imprensa pauta o Judiciário com denúncias sem prova, o Judiciário “acata” a denúncia e a transforma em decisão judicial, a imprensa por sua vez repercute, e o Judiciário dá seguimento a esse moto-contínuo, esse círculo literalmente vicioso.

Isso tem tudo a ver com o que me disse em entrevista o jurista Celso Bandeira de Mello na semana passada: “Quem conduziu tudo isso, o chamado mensalão, foi a imprensa (...) Nós não estamos vivendo um momento em que o Direito é muito valorizado” no país. 

Não sou eu quem está falando. É Celso Antônio Bandeira de Mello, mais um jurista de respeito a apontar a autocracia preocupante pela qual passa o país.


Um comentário:

Felipe Cabañas da Silva disse...

De fato, eu não percebi o detalhe sórdido. Excelente o seu texto e a sua crítica, tendo em vista que essa constatação e essa reflexão jamais estampariam as páginas dos diários tradicionais. Quando a "mais alta corte" do país demonstra fraqueza frente às pressões midiáticas (que são diferentes de pressões populares, embora muitos analistas ainda insistam em confundir as duas), é possível diagnosticar uma situação de insegurança institucional, em que há sérios indícios de que a justiça não está resguardando a sua obrigatória independência em relação aos agentes externos. Em Estado Democrático de Direito, a justiça está a serviço do povo, mas tecnicamente embasada pela ciência do direito e não pelos clamores populares - muito menos por clamores fabricados em redações jornalísticas. Sem isso, chame-se o sistema político do que for, menos de democracia. Sem isso, voltaremos à lei de talião, à barbárie.