domingo, 6 de agosto de 2017

Pequena crônica sobre xadrez e passarinhos


Para Gabriel


Eu tinha 7 anos. Minha mãe, a Leila, me levava e buscava num certo ponto onde o ônibus escolar me pegava e deixava. Eu era muito magrinho e relativamente pacífico -- mas era de escorpião. Por ser magrinho, franzino, os moleques vinham pra cima de mim na escola, e eu era meio "arregão". (A escola é a primeira grande prova a que a civilização nos submete.)

Tinha um menino (chamava-se Marcos) que encanava de me dar uns tapas, e eu não reagia. Minha mãe via.

Um dia, minha mãe, indignada, disse:

- Eduardo, se você apanhar desse menino mais uma vez, você vai apanhar dele e de mim.

Nunca vou esquecer essa lição muito valiosa que dona Leila me deu. Ela estava me ensinando, ela queria dizer que eu tinha que me defender, senão eu estava morto. 

Desde aquele dia, entendi que, neste mundo, ou você se defende e reage, ou os caras montam em você. Aí, então, eu passei a não mais tomar a primeira porrada. 

Quando via que uma briga era inevitável (o que procurava evitar ao máximo), quando eu via que ia apanhar, eu não esperava e dava a primeira porrada, antes do meu oponente. Eu era rápido, pegava ele de surpresa e saía em vantagem. E assim foi. Os outros, fisicamente mais fortes, passaram a me respeitar. Minimamente, porque, afinal, eu continuava magrinho e não tinha muita chance.

Essa estratégia do ataque súbito passou a ser a melhor defesa que eu tinha (eu que era magrinho, mas ágil) diante de um mundo selvagem em que os moleques matavam passarinhos e batiam nos outros moleques.

Mais tarde tomei gosto por jogar xadrez, e meu ídolo era o Garry Kasparov. Um gênio, cuja estratégia era sempre o ataque. 

Eu não matava passarinhos, e ver os guris matarem me deixava indignado.

5 comentários:

Gabriel disse...

É. O ataque é o que tem de estar na mente de quem se defende, ou... poderá ser chamado de masoquista. Se há uma luta, saber defender-se é útil apenas se você não pode atacar, caso contrário, é necessário ir embora para não morrer. Mas, como diz o ditado, 'se correr...' Esse foi um conhecimento passado também a mim e, como se nota, no meu caso e até onde sei, já está no mínimo na segunda geração. E parece ter grande efeito, do futebol à política: é natural que seja admirador do alvinegro da Vila, time que mais fez gols neste planeta. E é igualmente natural que esteja muito preocupado com o nosso belíssimo e pusilânime país: está um tanto difícil prever a estratégia de ataque deste povo acuado, porque este povo acuado não parece ter percebido em que situação está. É como se visse em Mike Tyson (sem comparações de caráter entre Tyson e a CIA; apenas representando um pugilista de mão pesada) um grande camarada e visse o ringue como uma sala de estar, com um chazinho à mesa coberta com toalha de Natal. Ou como se visse na devoradora leoa um simpático gatinho grande. Ou mesmo como se visse no diabo uma bela dama.

Afora esta nossa posição desprivilegiada nesta luta, também parece ter tido grande influência sobre minha personalidade subjetiva essa ideia de estar sempre pensando no ataque. É-me muito custoso e doloroso aceitar a impotência frente à injustiça. E minha cabeça começa a pensar absurdos. Dispensando a atenção para os detalhes do meu ataque, é importante ostentar a conclusão de que -- do ensinamento que minha avó passou para meu pai e que, como o fazem os judeus, meu pai me passou -- não há outro estratégia possível, como santista, defensor da continuidade da história da minha espécie e indivíduo... só a Vitória interessa! E, sabemos, não existe vitória sem ataque.

Não me canso. Como diz o cubano: "queremos a paz, mas se eles querem guerra, nem um só arredará". E também: "se você não acaba com eles, eles acabam com você."

Salve minha avó, branca, pero Negra Como a Noite. Afinal, teve seu pé nesta terra.

Oxalá o nosso ataque derrote as forças do mal, dona Leila!

Saravá!

Paulo M disse...

Tenho a impressão de que hoje em dia é bem mais raro uma criança absorver dessa forma uma frase de modo a considerá-la com tal dimensão, para o resto da vida. Essas partículas de momentos estão diluídas pela valorização das futilidades, pelo volume de informações vazias e pela rapidez de um mundo cada vez mais robótico e insensível, que além de tudo não tem mais a dona Leila. Também conheci seus 'puxões de orelha', providenciais.

Alexandre Maretti disse...

O instinto de sobrevivência e de defesa são fatores determinantes, acredito. A gente vai aprendendo sempre. Na minha molequice, briga era coisa normal, até saudável, a gente batia, apanhava, fazia parte, era quase sempre. Minha mãe sempre dizia que eu parecia maloqueiro e eu não via problema nenhum nisso.. comecei a acreditar que eu era mesmo. As brincadeiras de matar e morrer eram apenas brincadeiras. Minha mãe sofria com tiros de revolveres de espoleta pela casa, a durarem tardes a fio. Realmente era um bang bang de verdade. Não tenho do que reclamar...
Saudades dos nosso jogos de xadrez.

Unknown disse...

“A escola é a primeira grande prova a que a civilização nos submete.” Gostei tando dessa frase que ela, assim anseio, se fixará em minha memória. A memória imediata com os anos vai se tornando ineficiente até para as coisas mais corriqueiras como abastecer a despensa com alguns itens que, não obstante idas e vindas ao mercado, são esquecidos... Tento, sofregamente, comprar uma garrafa térmica para substituir a que se encontra em estado avançado de putrefação, quiçá, não sei, comprometendo a qualidade do café, mas nunca lembro... e os dias vão se passando, engolidos pela lua alaranjada que tem ornamentado o céu nessas últimas noites, única, democrática e suficiente. Foi-se o tempo em que me era possível, com certa facilidade, decorar poemas inteiros, frases de pensadores, o nome dos desafetos e as razões pelas quais eles assim foram qualificados, e as listas de supermercado... Mas acordei chorosa. Eu que odeio o choro e conheço sua inutilidade, embora, devo admitir, dele me beneficio na necessária hidratação dos olhos. A menina que era eu, de bochechas rosadas, cabelos presos em um ou dois rabos de cavalo, com medo do mundo que lhe parecia grande demais para percorrer com suas pernas curtas e roliças, conheceu a sensação de liberdade quando em plena sala de aula, sentada na última fileira, conseguia, sem que ninguém notasse, livrar-se das amarras de seu primeiro sutiã rendado e alaranjado como a lua dessas últimas noites. Era uma tarefa meticulosamente estudada e a repetição dessa prática resultou numa habilidade extraordinária, mas que não lhe serviu para nada na vida adulta. Essa lua e a frase do Edu me remeteram a um passado longínquo. Tenho a sensação de que tudo é passado e longínquo e por isso choro. Acho que todos temos dois lados (duas personalidades) e uma das minhas odeia a outra, especialmente quando uma delas se mete a chorar num domingo ensolarado.

Eduardo Maretti disse...

Uma linda crônica de domingo - enquanto vamos vivendo - pra comentar minha crônica, Tania Lima. Obrigado - suas palavras são sempre bem-vindas.

"Tenho a sensação de que tudo é passado e longínquo e por isso choro."

Seu comentário de hoje lembra um texto teu, que publiquei aqui no blog >>

http://fatosetc.blogspot.com.br/2015/04/o-quintal-da-dona-juventude.html