sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Notas de Buenos Aires


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Avenida de Mayo é o coração de Buenos Aires


I

Jorge Luis Borges, que nasceu em Buenos Aires em 24 de agosto de 1899, escreveu sobre sua cidade natal:

los años que he vivido en Europa son ilusorios,
yo estaba siempre (y estaré) en Buenos Aires
.”

Os versos, do poema Arrabal, têm uma coloração metafísica, como se dissessem: se você conhece Buenos Aires, ela já não te deixará. Outro grande escritor argentino, Julio Cortázar, afirmou que caminhar por Buenos Aires era um de seus maiores prazeres.

Mesclando as abordagens de Borges e Cortázar, a mim Buenos Aires provoca uma sensação de nostalgia, no sentido que se dá à palavra na língua espanhola, uma mistura de nostalgia, melancolia e uma espécie de saudade sem objeto. Isso muito provavelmente pela arquitetura e cultura da cidade. De modo geral, essa tênue melancolia não atrapalha e o prazer provocado pela cidade prevalece.


Avenida Saenz Peña

O caráter severo e orgulhoso dos portenhos de Buenos Aires como que se reflete na arquitetura urbana europeia, de matriz madrilenha. Como Borges, os portenhos são orgulhosos, gentis, românticos e por vezes arrogantes.

II


Você está andando por aquela vila e de repente vê la cancha

Buenos Aires tem bairros muito interessantes, mas La Boca fascina sobretudo. O bairro é intrinsecamente ligado ao Boca Juniors. La Boca é muito cativante porque é popular.

Caminhando, entre as ruas daquela vila, de repente você se depara com la cancha, La Bombonera. O estádio é imponente, colorido, bonito, como uma antiga arena greco-romana plantada na Argentina.

Pensemos comparativamente: imagine o time de um bairro cujos torcedores misturassem o caráter do mais popular e do povo (o Corinthians) com o caráter dos ítalos (que em São Paulo estão na Mooca e na Pompéia, por exemplo – os palmeirenses), e com um estádio que sob vários aspectos lembra muito a Vila Belmiro naquela vila de Santos. O Boca Juniors é tudo isso.

No bairro, um jornaleiro já idoso, com uma banquinha humilde de revista na calle Brandsen, me diz que Cristina Kirchner quebrou o monopólio da mídia com a Ley de Medios e que Daniel Scioli, o candidato da presidente, vai ganhar na primera vuelta (primeiro turno). O senhor me diz que a Ley de Medios precisa vingar e por isso e outras coisas votará no candidato de Cristina.

III

A avenida de Mayo, na minha modesta opinião, é o coração de Buenos Aires. Não (apenas) por seu simbolismo, já que começa na Casa Rosada, sede do governo argentino, e termina no Congresso Nacional do país. Mas porque o lindíssimo bulevar de 1,5 km de extensão – com dezenas de cafés, bares e restaurantes de vários tipos – é um espaço democrático onde transitam pessoas de todas as idades durante todo o dia e até tarde da noite.

O mítico Café Tortoni, fundado em 1858, fica na avenida de Mayo. Diferentemente de São Paulo, onde você gasta os olhos da cara em qualquer barzinho medíocre metido a besta, você pode ficar horas no Tortoni, tomando um bom vinho (que na Argentina é muito barato) e comer um prato e gastar cerca de 300 pesos em duas pessoas (cerca de 85 reais, no câmbio de hoje: cada real valia 3,60 pesos no paralelo, enquanto estivemos lá).

Na avenida de Mayo, o mítico Tortoni

Se você está num hotel na avenida de Mayo, não precisará de mais nada. Não há nada parecido à avenida de Mayo em São Paulo. 

IV

Santelmo também é um bairro especial, acolhedor e agradável. Imagens como a desta senhora na foto abaixo, num restaurante onde almoçamos no bairro, falam por si. Tem muitos artesãos e lojas de antiguidades. 

Personagem de Santelmo

Apesar de estarmos em Santelmo, o ônibus (lo coche) abaixo retrata como é a frota da cidade. São modelos como esse que circulam em todos os lugares. Dificilmente você espera mais do que cinco minutos no ponto para pegar um coche. Não existe a função de cobrador nos ônibus. A passagem é paga com um cartão (Sube) que você carrega (como o nosso bilhete único) e usa na máquina ao lado do motorista. Mas não há um sistema como o bilhete único paulistano. Lá, você paga a mesma tarifa toda vez que pegar um transporte, ônibus ou metrô (lá é Subte); não existe desconto. Em compensação, uma passagem custa em média (não tem um valor fixo) 3,25 pesos, o que equivale a cerca de 1 real. O Estado nacional subsidia o transporte.


O ônibus 29 te leva a Santelmo



Não gosto do bairro La Recoleta, elitista e caríssimo para tudo. Mas lá está o Museu Nacional de Belas Artes. No acervo, podemos ver maravilhas como as bailarinas de Degas.





Ou o quadro Annabel Lee (também chamado Mulher na praia, de 1861), de Édouard Manet, referência a Annabel Lee, título do último poema completo composto pelo poeta americano Edgar Allan Poe, escrito em 1849. Nele, Poe escreve: "Faz já muitos anos. Em um reino além do mar vivia uma menina que podias conhecer pelo nome de Annabel Lee. Essa menina vivia sem nenhum outro pensamento a não ser me amar e ser amada por mim" (Edgar Allan Poe, 1849).


Ou este Van Gogh (Le Moulin de la Galette).



Ou este Picasso.



VI 

Palermo foi o bairro onde Jorge Luis Borges viveu parte da infância. Não à toa, o escritor virou nome de rua. Não conheci Palermo quando fui à cidade pela primeira vez, há uns 15 anos. Mas, de modo geral, achei o bairro um pouco monótono.




VII

Faltou, e aqui acrescento, falar do metrô (que em Buenos Aires se chama Subte - de subterrâneo), sobre o qual mais de uma pessoa me perguntou e o Paulo citou em comentário neste post: "Por toda parte, naquele subsolo, você lê versos nas paredes e nas verticais dos degraus das escadas e caminha sobre centenas de capas de livros desenhadas em pisos que parecem velhos, como os tetos e as paredes". Abaixo a estação Lima (na avenida de Mayo).


A estação da famosa Plaza de Mayo.



O metrô na cidade foi fundado em 1913 (é o mais antigo da América latina) e tem 56 km de linhas. As estações se espalham por toda a cidade, das regiões centrais à periferia. O metrô (Subte), porém, não chega a lugares importantes, como Recoleta e Santelmo.

As estações têm arte e características diferentes entre si. Muitas têm bancas de jornal em plena plataforma, o que mostra uma característica dos portenhos: eles consomem muito mais revistas e jornais (assim como livros) do que nós. O metrô funciona até as 11 horas da noite.




VIII

A julgar pelo que sinto em Buenos Aires, os argentinos da capital são orgulhosos, geralmente gentis, românticos e por vezes arrogantes. Muito mais politizados do que os brasileiros, apesar da campanha do Clarín. Foto abaixo – ao estilo Folha de S. Paulo – mostra manchete de página da segunda-feira, 5 de outubro.


Clarín: jornalismo ao estilo Folha de S. Paulo

Ao sair da cidade, o taxista que nos levou do hotel para o aeroporto de Ezeiza, bastante politizado, filho de antigo empleado de transportes, conta que o governo dos Kirchner promoveu justiça tributária, tentando implantar na medida do possível o princípio de um sistema progressivo, de “quem tem mais, paga mais”, e que, por esse e outros motivos, votará em Scioli. Assim como o velho jornaleiro de la Boca (embora menos kirchnerista do que este), mencionou políticas de Estado.

Por exemplo, consumo de gás. Daniel, o taxista, conta que num certo momento ele estava em dificuldades e não podia pagar a conta do gás de sua casa. O Estado então subsidiava o gás para ele. "Pero ahora ya lo puedo pagar, entonces ya no es necesario que ayudeme el Estado". Citou também uma lei graças à qual não perdeu seu imóvel quando sua vida esteve mais difícil: a lei aprovada no governo dos Kirchner impede a perda judicial, por dívidas, de um imóvel se este imóvel é o único da pessoa e onde ela mora.

Mas Daniel, o taxista, vai votar meio a contragosto em Daniel Scioli. O candidato de Cristina foi vice-presidente da Argentina e é o atual governador da província (estado) de Buenos Aires. Aparentemente, os eleitores de Scioli que o elegeram para governador da província não estão satisfeitos com seu governo. Votam no candidato da presidente para "no cambiar todo", o que aconteceria com a vitória da oposição, os tucanos deles.


Publicado originalmente em 15 de outubro de 2015, às 15:52



3 comentários:

marco antonio ferreira disse...

Lindo passeio, acho que já conheço BA sem ter ido lá jamais.
Gostei dos buis, muito simpático. Enfim BA parece ser uma cidade generosa, segundo sua crônica, espaço e tempo de sobra.
Destaque pra pinturinhas, sic, que vc postou. Bem colocadas, a de E. Manet me pareceu especial. Título e obra.
Bem aqui... ontem vi um urbanista, no youtube, entre muita coisa ele dizia que no interior de São Paulo as cidadezinhas, seguem o padrão, sic, urbanistico de sampa. Anel viário, marginal, sim, marginal, etc.

Paulo M disse...

Buenos Aires reverencia a arte. Ela em si, em sua arquitetura, já é uma obra de arte em muitos pontos. Quando estive lá, em 2014, algo que me surpreendeu foram as estações de metrô. Por toda parte, naquele subsolo, você lê versos nas paredes e nas verticais dos degraus das escadas e caminha sobre centenas de capas de livros desenhadas em pisos que parecem velhos, como os tetos e as paredes. Buenos Aires é velha, antiga, poética, acho que fundiu o romântico e o moderno, e conserva belamente seu passado. Talvez daí também essa nostalgia, porque São Paulo, fora lugares dispersos como a estação da Luz, é reta, funcional demais e não valoriza a memória, e nós precisamos da nossa memória.

Eduardo Maretti disse...

Verdade, Paulo, boa lembrança. Acrescentei lá no post umas linhas e fotos do Subte, o metrô de lá.
E acrescentei também outra "pinturinha", um quadro do Picasso...