sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Pensamento para sexta-feira [56] - BARATAS (fatos reais)



"Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe." (Clarice Lispector)

CRÔNICA DE VERÃO 2




Episódio 1

Eu costumava dizer com orgulho que moramos neste apartamento há mais de seis anos sem que nenhuma mísera barata tivesse aparecido por aqui. Sim, mais de seis anos. Estava quase me sentindo uma pessoa abençoada. Mas eis que de repente, algo aconteceu, na primeira semana de dezembro de 2014.

Eu estava pra sair de casa pra ir trabalhar quando me deu uma leve vontade de ir ao banheiro (necessidade número 2), e por prudência fui, e fui ao banheiro da área de serviço, porque a zeladoria tinha ligado minutos antes para informar que estava desligando a água do “banheiro social” por causa de um serviço de manutenção.

Fui então ao banheiro etc. Puxei a descarga, meio de costas, e quando me virei para fechar a porta do banheiro vi uma enorme barata. Mas, estranhamente, estava morta, muito morta, completamente morta.

Fiquei chocado, pois nunca tinha aparecido uma barata neste AP, nem viva, nem morta. Ela estava exatamente entre a porta, o tapetinho e a privada, onde teria sido impossível eu não tê-la visto ao entrar no banheiro ou enquanto eu estava ali, sentado.

Fiquei me perguntando: mas que diabo é isso? Peguei a pá e joguei a barata pela janela (no grande jardim onde há muitas árvores no condomínio), sempre me perguntando: mas como essa barata morta apareceu aí se não estava aí quando eu entrei no banheiro pra sentar na privada, num lugar tão visível que teria sido impossível eu não tê-la visto ao entrar?

Pensei no enigma, que exigiu de mim um esforço digno de Sherlock Holmes. A hipótese daquele exemplar da mais asquerosa das criaturas ter sido envenenada em alguma dedetização no condomínio, ter vindo tonta, subindo, até morrer ali, não era plausível, já que ela não estava lá quando entrei no banheiro.

Então, fez-se a luz e entendi. Antes de ir ao banheiro (estava meio frio pela manhã, apesar de ser dezembro), eu coloquei sobre o ombro uma blusa de lã azul que tinha levado à praia, nas férias, mas que ficou na mala sem uso. Como na praia tem muitas baratas e usei e abusei de um veneno de inseto, concluí, como um verdadeiro Hercule Poirot, que essa barata morta estava, já morta, desde a praia, dentro da blusa, envenenada pelo monte incalculável de baygon que esguichei nas dependências da casa da praia – pois num dos primeiros dias uma cena de horror aconteceu, quando descobrimos que baratas,  muitas, de repente corriam pelo chão da cozinha num certo início de noite, e foi aquela cena dantesca de baratas correndo até que conseguimos destruí-las todas, após descobrir que tinham feito um ninho. Enfim, a barata que apareceu morta no apartamento deve ter se escondido envenenada na blusa, e lá ficou. E justamente na hora em que me sentei na privada o maldito inseto morto caiu da blusa ali, por trás de mim, pela manga da blusa, pelas costas da blusa, sei lá.

Foi o que concluí.

Episódio 2

Está certo que a barata estava morta, mas aquilo me perturbou. Pois, morta ou não, era uma barata. Algo tinha querido dizer que já não éramos mais invulneráveis em nosso AP. Desde então, o apartamento nunca mais foi o mesmo.

E, de fato, como se aquele cadáver marrom fosse um aviso, cerca de 40 dias depois, num sábado de um calor insuportável, tarde da noite, eis que estava ali, na porta do armário da cozinha, vinda da escuridão da noite diretamente pela janela escancarada, uma gigantesca barata voadora, espreguiçando suas asas prontas para voar, logo acima de uma torta quentinha recém-tirada do forno. Com nossa súbita presença, lógico, ela voou. E todo mundo sabe o que significa uma barata voando numa cozinha de apartamento. Nem o mais bravo soldado mantém a dignidade.

A excomungada por fim se enfiou por trás de uma prateleira. Fomos tirando objeto por objeto, cada um com o cuidado e o temor de estar cutucando a mais terrível fera. Por fim, foi possível vê-la atrás de um vidro vazio, enorme, encaixada entre o frasco e a parede como se sempre tivesse estado ali. Para não correr o risco de ver o demônio de repente voar (é melhor cinco baratas tontas correndo no chão do que uma voando), já fui esguichando o veneno, com tanto gosto que poderia ter danificado a bomba que ejeta a nuvem de líquido mortífero. O animal asqueroso finalmente caiu no chão, correu, mas eu não esmoreci e continuei esguichando a nuvem, até que ela virou de costas, se debateu, e finalmente expirou (ao que parece, pois, como se sabe, as baratas têm uma característica assustadora: elas podem ressuscitar). Pelo sim, pelo não, coloquei-a na pá e atirei-a pela janela do oitavo andar.

Episódio 3

Foi hoje (12), menos de dois meses e meio após o funesto aparecimento da barata morta e pouco menos de um mês depois da barata voadora.

Por falta de opção melhor, comíamos uma pizza na sala quando, de repente, ouço um grito surdo, não escandaloso, mas de pavor, enquanto vejo algo voando baixo pela sala, que pude perceber ser um inseto ligeiramente grande, mas não muito.

Podia ser um besouro, mas imediatamente eu soube: era outra barata. Outra! Seis anos sem nada, nenhuma, e de repente, em 70 dias, uma morta e duas vivas!

Esta, embora menor, também era voadora (é melhor 5 baratas tontas grandes no chão do que uma média voando). E a maldita voou da sala para dentro do quarto. Já fiquei imaginando ter que dormir na sala ou, tarde da noite, desmontar o quarto atrás do famigerado inseto em algum dos infinitos cantos, dobras de roupa, interior de sapatos, por trás do colchão ou qualquer outro esconderijo onde pudesse entrar. Porque, se tem uma coisa que eu não faço, é dormir com uma barata no quarto. Mas, por sorte, ela estava na parede.

Sabem qual é a palava que designa fobia de baratas? Catsaridafobia. Ou seja, até o nome para esse medo causa repugnância.

Quando tirei o chinelo para destruí-la, ela voou, e veio na minha direção. Era só acertá-la em cheio, estava fácil, afinal sou ágil e mato até as ligeiras moscas com facilidade. Mas acontece que baratas são como espíritos que se materializam para perturbar as pessoas, e então errei a chinelada e, evidentemente, ela veio diretamente pra cima de mim, bateu na minha perna e correu para um lado, enquanto, claro, eu fui para o outro. Acho que não gritei, mas a única testemunha presente na casa (que havia gritado antes) afirma que sim.

Vi que ela se enfiou por baixo do criado-mudo. Peguei o veneno e esguichei. Arrastei o móvel e... cadê? Nada. Vários minutos depois, reapareceu correndo, embora tonta, na minha direção. Vi que esta era bem nojenta, meio esbranquiçada. Mais veneno. Com gosto. Ela rodopiou, correu mais um pouco e, filha da puta, entrou numa fresta do armário embutido, no canto da parede. Enfiei o bico do baygon no buraco e injetei uma dose aparentemente letal, até porque aquele buraco não tem saída, a não ser por onde ela entrou. Mas a desgraçada não saiu. Ficou lá. Acredito que tenha morrido. Mas baratas muitas vezes gostam de te deixar na dúvida. Mesmo mortas, como fantasmas em forma de insetos.

É por isso tudo, além do calor intolerável (e pelos relatos nos links abaixo), que eu odeio o verão.


Leia também da série insetos (fatos reais!)

Pensamento para sexta-feira: Eu e os insetos (ou, motivos para ter medo de insetos)

A volta da vespa noturna

A personalidade das moscas


9 comentários:

Vitor Nuzzi disse...

"baratas são como espíritos que se materializam para perturbar as pessoas"

Texto perturbador!

Já se falou que, um dia, os humanos deixarão de existir e as baratas triunfarão sobre a terra. É preciso resistir.

Eduardo Maretti disse...

hehe
Resistir, sempre!

Alexandre Maretti disse...

Ai ai, baratas..
Já devo ter eliminado várias gerações de baratas. Mas o ser humano contribui para a proliferação das baratas, dos ratos, parece uma coisa do mal...as baratas estão aqui na Terra há milhões de anos. De qual mundo vêm as baratas? Às vezes penso que os seres que vivem na terra vêm de vários mundos. As baratas são de mundos sombrios, das trevas....Aqui é um bom lugar para elas, é quente. O único inseto que foge quando chega-se perto é a barata. Há exceções...as voadoras atacam.
Nesse verão já tive a experiência de acordar pela madruga com um desses insetos no meu pé... acordei sentindo suas patas percorrendo minhas pernas adentro, que horror. Chutei tudo que tinha ao meu redor, ela foi parar na janela...uma cena bem ridícula...era voadora...só com a luz do abajur, via aquele mostrengo na minha frente...peguei o chinelo e numa só....PÁ...liquidei a danada.

Eduardo Maretti disse...

Muito bem, Alexandre, assim é que se faz. Como diz o Vitor, "é preciso resistir".

Agora, um dos problemas desse inimigo do sossego é que, mesmo que elas teoricamente fujam, como vc diz, a "barata tonta" é tonta porque ela começa a correr em qualquer direção e parece pensar que correndo assim ela foge, mas muitas vezes ela corre direto pra cima de vc, de quem ela deveria estar fugindo...

Alexandre Maretti disse...

O Matador de Baratas ( O Filme )

Sim, mas seu instinto é fugir sem pensar, correr escapa da morte, mesmo que para cima da gente. Que bicho asqueroso. Mas é isso mesmo, barata tonta. Logo todas as baratas são tontas. Uma descoberta científica.

Anônimo disse...

Refestelei meu traseiro - no passado farto - confortavelmente na cadeira para saborear cada letrinha de seu texto.
O Alê Maretti é, superlativamente dizendo, um cabra da peste, já que pegou o chinelo e numa só... PA... liquidou a danada (que lhe cabia neste latifúndio).
Edu, que as baratas em seu apê nos permitam mais episódios dessa saga.

Tania Lima

Eduardo Maretti disse...

Me dá calafrios, Tania, mas vá lá... Pra alguma coisa essa merda de criatura, desculpe a expressão, há de servir! rss

Paulo M disse...

A natureza é 'perfeita' até pra criar o horrendo. Tudo nesse bicho é feito na medida pra isso. É um animal expressionista. Parece que concentra todas as coisas repugnantes que assombram nosso inconsciente. Engraçado o "Metamorfose", do Kafka. Alguém me falou um dia que o bicho que se descreve no livro não é necessariamente uma barata, pois isso não fica claro na narrativa. Pode ser um besouro, por exemplo. Mas a maioria das pessoas (como eu), quando leem a obra, associam automaticamente o animal a uma barata, porque esse bicho é o que há de mais monstruoso que se possa imaginar. É um minimonstro que nos fascina como um pesadelo, anda em esgotos e move sua cabeça marrom provida de boca e dentes que mordem. Enfim, é um troço enriquecedor, desde que saibamos enfrentar nossos medos he he. Eu ainda não consegui.

Eduardo Maretti disse...

"A natureza é 'perfeita' até pra criar o horrendo."

É verdade, esse inseto "move sua cabeça marrom provida de boca e dentes que mordem". Muito pertinente, mesmo, a lembrança de Metamorfose de Kafka. É impossível que o bicho descrito não seja uma barata! O livro começa assim:

"Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha."