quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Eduardo Campos, as mortes (segundo Borges) e o destino


Foto: PSB


Ontem, ao deitar, abri o livro Nova Antologia Pessoal, de Jorge Luis Borges, uma obra que há muitos anos, vez ou outra, eu abro, para ler um texto ao acaso. O que reli ontem (e do qual já não me lembrava) é intitulado "A outra morte". Conta a história de um homem, chamado Pedro Damián, sobre cuja vida havia um relato de que em certa batalha havia morrido, muito jovem, sem demonstrar a coragem de um verdadeiro guerreiro. Mas essa versão, de um militar que presenciara a morte desse soldado, foi depois desmentida por outros fatos, que estranhamente engendravam uma outra história segundo a qual esse homem havia encontrado a morte não como um covarde, mas como um bravo. As histórias se entrelaçam de tal maneira que ambas se confundem com certas verdades que comprovavam as duas.

A confusão se transforma em uma discussão metafísica sobre o destino e certas suposições metafísicas sobre o tempo.

O conto de Borges, até porque o li ontem, me veio à mente hoje, com a trágica  morte de Eduardo Campos. Assim como me ocorreu um pequeno poema que é a epígrafe do meu livreto de poesia publicado quando eu era muito jovem, Amuletos. A epígrafe é do meu irmão, Paulo Maretti, e diz:

O destino não mente
Ele desmente
Os corações das pessoas é que mentem
Para o destino que já vem vindo sem saber de nada.

Essas associações são a maneira como recebi a morte de Eduardo Campos, um jovem líder que, segundo alguns, se antecipou à ordem natural da política ao lançar-se à presidência da República após romper com o governo de Dilma, e com Lula, após ter sido ministro da Ciência e Tecnologia do presidente, como ele, pernambucano, entre 2004 e 2005.

Para além das análises e cálculos políticos a respeito do que a morte de Campos trará como consequências à eleição, me espanta nessa morte o aspecto súbito e chocante com que ela chegou nesse dia cinzento, frio e chuvoso, ceifando uma liderança política importante, num 13 de agosto que é também a data da morte do avô de Eduardo Campos, Miguel Arraes, um dos mais importantes líderes da esquerda brasileira no século passado.

Líderes de todas as vertentes políticas, de esquerda e de direita, alguns com sinceridade, outros com a sórdida máscara da política, lamentaram a perda. Eu estou entre os primeiros. Lamento sinceramente.

Eduardo Campos era, ou é, muito querido em Pernambuco. Por certo, não por acaso.

Talvez conseguisse se alçar, no futuro, com reais chances de suceder um projeto popular com o apoio de Lula e Dilma, se se tivesse mantido aliado de Lula e Dilma, como um herdeiro legítimo das lutas que seu avô travou e das que, guardadas as diferenças de tempo e conjunturas políticas, como presidente, Lula realizou no Brasil. Mas num momento como esse, não são as vãs e mesquinhas conjecturas políticas aquilo que mais me assombra.

Quis o destino que Eduardo Campos encontrasse, prematuramente, uma outra morte, enigmática, traiçoeira e implacável, nesse 13 de agosto de 2014.

Quem sou eu para julgar, mais do que um homem, o destino de um homem que fez muito mais do que eu? O destino que já vinha vindo sem saber de nada.

PS: tive um único contato com Eduardo Campos. Eu estava cobrindo, como repórter, um evento do qual ele participou num hotel em São Paulo, poucos meses atrás. Quando ele chegou, eu estava sozinho à porta do hotel, e fui até ele para tentar algumas declarações exclusivas. Ele me olhou com aqueles olhos intensamente azuis e disse que não dava tempo, estava atrasado. Minutos depois, ao entrar no palco para sua palestra, me viu de longe e fez um gesto de cumprimento. Eu não retribuí, pensando que estava se dirigindo a outra pessoa (o que é muito comum em eventos dessa natureza).

Depois, vi que não havia ninguém atrás de mim. E só agora, ao ouvir relatos inclusive de pessoas de sua terra, segundo as quais era um homem muito educado, cordial e até doce, como me disse uma pessoa de Pernambuco, percebo que entre mim e ele ficou um gesto não retribuído, ou um gesto incompleto, e em mim um pequeno, pequeníssimo e incômodo remorso. 

3 comentários:

Paulo M disse...

Belo texto. Concordo com tudo. Penso que Eduardo Campos estava ainda dando início a seu traçado político num mundo em que não há mais fronteiras definidas entre direita e esquerda como havia até a década de 80. Talvez fosse importante num futuro qualquer, quando já teremos perdido outros líderes insubstituíveis.

Só para contar, hoje eu ia para a editora de Metrô quando me ocorreu, acho que por alguma indignação com a vida, a música "Se eu quiser falar com Deus", de Gilberto Gil, que pra mim ironiza a condição humana diante da onipotência divina. Tropecei numa garota que carregava um violino encapado e quis (eu), na saída da estação Marechal Deodoro, perguntar se ela tocava no Teatro São Pedro, ali perto. Desisti da ideia porque achei que a garota se assustaria com minha presença repentina e provavelmente incômoda. Mas li em suas costas, na capa do violino e inscrito como que a navalha, em garrancho: "Nada se ganha sem sofrer." O que isso tem a ver com Campos? Nada, talvez, a menos que fosse pela lógica de uma sequência intencionalmente montada, e aí entenderíamos de alguma maneira se tudo fizesse parte do enredo de um filme, um conto ou uma novela.

Mas vamos precisar de um tempo para digerir o desastre ocorrido hoje em Santos, e para saber de seus reflexos nas eleições decisivas de outubro próximo.

Eduardo Maretti disse...

É vero, "Nada se ganha sem sofrer"; é vero que isso "nada tem a ver com Campos". Mas tem.

"uma sequência intencionalmente montada"? (Borges)

sobre os reflexos nas eleições, vamos ver mais à frente.

beijos, meu poeta.

José Arrabal disse...

Belíssima a sua crônica. Intensa, ética, elegante e com sentimento essencial.O melhor dentre todos os comentários que li a respeito da tragédia que matou Eduardo Campos!