"Viver é muito perigoso"
(Riobaldo - Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas)
(Riobaldo - Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas)
Foto: Alexandre Maretti
O rio São Francisco: belo e traiçoeiro, como todos os rios |
A trágica morte do ator Domingos Montagner no rio São Francisco me fez pensar em duas coisas. Uma diz respeito à condição humana na sua relação com a natureza. A outra tem a ver com uma experiência pessoal.
A condição humana
Como diz povo do interior, você nunca entra no mesmo rio duas vezes. Um rio muda. Ontem ele era um, hoje é outro. A correnteza, os galhos, as pedras e o acaso se aliam numa espécie de complô da natureza contra o qual o ego, nossa teimosia em dominar a natureza, não pode nada. O ser humano sempre terá a impressão de que a natureza está sob seu domínio, mas não está. Não existe nada mais traiçoeiro do que as águas dos rios.
Lamento pela morte de Montagner, que, pelos relatos, era uma pessoa bacana. Mas a verdade é que os rios matam. Não se esqueça disso.
Uma experiência pessoal
Tive uma experiência com rio que poderia ter me custado
muito caro. Estávamos na cidade de Barra Bonita, à beira do rio Tietê, onde
você pode nadar (pelo menos era assim há uns dez anos). Havia uma pequena ponte
de madeira de onde os meninos mergulhavam no rio, numa algazarra alegre típica de
criança.
Vendo aquilo, decidi ir até a pontezinha e também dar um
mergulho. Não era uma ponte de uma margem a outra, claro, porque o Tietê é
bastante largo. Era uma espécie de pinguela ligando dois braços de terra. A
altura da ponte de madeira às águas do rio era bem pequena, uns dois metros
apenas. Animado, cheguei à ponte onde havia vários meninos de 12 a 15 anos do
lado direito. Do lado esquerdo, célere, quase imediatamente saltei pra mergulhar. Nesse momento,
no lapso de uns dois segundos entre o salto e o mergulho, eu ouço a voz de um
menino dizendo:
– Aí nããããããoo!!
A frase bateu diretamente no meu corpo. Num reflexo, eu fiz
o que se pode chamar de uma arremetida (como se diz na aviação), e ao invés de
mergulhar estiquei o máximo que pude os braços para cima e entrei na água de
barriga.
Ao voltar do mergulho abortado, dentro do rio, um rapaz de
uns 16 anos nadou até mim e perguntou preocupado:
– Tudo bem, véio?
– Tudo – respondi.
É que eu tinha saltado justamente do lado da ponte em que
era muito raso e cheio de pedras, tipo a um metro ou menos da superfície. Não
fosse aquela vozinha de criança ("Aí nããããããoo!"), eu poderia ter
quebrado a mão ou os braços, a cabeça, a coluna cervical ou mesmo ter morrido.
Por sorte, aquele menino agiu como um anjo da guarda.
Por isso, eu sempre digo. Cuidado com o rio, se você não o conhece. E mesmo se pensa que conhece.
5 comentários:
Pô, que legal esse post. Não vejo novela, não vejo Globo, mas fiquei triste.
Será que fui como anônima no comentário anterior? Sou eu, a Rose, rsrs. Então... Será que era hora, que não, que é pior morrer doente e velho, que é mais cruel morrer no topo da linha da vida? Não sei. Não sei de mais nada.
O comentário anterior era:
A morte no topo da vida, no auge da realização, da beleza é chocante. A morte É chocante. A morte É. O rio, o redemoinho, a morte...
Complicado, Rose. A questão é absolutamente existencial, insolúvel.
Edu,
Em minha cidade há um rio de pequeno porte onde pescava e nadava quando adolescente.
Hoje o rio está podre devido ao crescimento urbano lançando esgoto em suas águas.
Às vezes ele revive, em ocasião de grandes chuvas, ao inundar e invadir suas margens e ruas com água bastante para limpar a atual podridão.
Nas pescarias de garoto meu sonho nunca realizado era pescar um grande piau, peixe raro e bonito que pouco aparecia nas águas de Mimoso do Sul.
Eis que tempos depois, já adulto, fui de novo pescar em nosso rio com meu filho Frederico ainda criança de uns 9 anos.
Levei uma bacia em que pretendia colocar vivos e nadando os peixes pescados, mais para divertir Frederico.
Eis que, surpreendentemente, pesquei o tal piau sonhado.
Era grande e lindo, nunca antes visto desse tamanho, o bastante para compensar meus frustrados desejos de adolescente.
Com todo o cuidado, tirei o peixe do anzol. Levei para a bacia, onde ele permaneceu vivo e hábil, admirado por nós.
Voltei a pescar, orgulhoso, ainda sem bem saber o que fazer com o piau...
...se o levava para casa, campeão exibindo a meus irmãos esse meu fruto da pescaria conquistado ou se retornava o peixe para as águas do rio.
Frederico resolveu o impasse. Com seus nove anos de vida nascente, ao me perceber distraído de volta à pescaria, pegou o piau com suas pequenas mãos e, quando vi, lá estava o belo peixe de novo nadando vivinho em seu reino fluvial, salvo e livre, restando-me, em casa, contar prosa, numa conversa de pescador sem provas... foi o que aconteceu e o que fiz...
...hoje certo de que desde então meu filho se preparava para ser médico, pois é o que é, salvando vidas.
Ao ler sua crônica, renasceu em minha memória essa antiga história feliz, feliz também por saber de você salvo pelo grito da menino antes de seu arriscado mergulho, contigo hoje firme para o que faz em suas atividades de escritor e jornalista, também para a amizade que sempre nos uniu e nos dedicamos, com mútua admiração, ao longo do tempo desde que nos conhecemos na PUC/SP.
Confesso que igualmente sou levado a assemelhar o garoto que lhe salvou de um possível acidente com aquele guri que tem em suas mãos infantis e corajosas o seu solidário protesto somado ao que gritamos por todo o Brasil: "Fora Temer!", ilustração da esperança manifestada em sua não menos bela postagem anterior.
Que assim seja.
Com tudo de bom,
fraterno abraço,
J. A.
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