Foto: Alexandre Maretti (1° de maio/2016) |
Agora que o golpe, se não está consumado, se aproxima disso, é hora, mais do que tardia, de a esquerda fazer uma autocrítica. Que esquerda emergirá desse momento histórico que se assemelha a 1954 e 1964, datas tão distantes da segunda década do século 21 em que estamos?
É fato que o golpe no Brasil, país da sétima economia do mundo, tristemente mais parecido hoje com Paraguai e Honduras do que com China ou
Rússia, para ficarmos no BRICS, é extremamente bem articulado e envolve
interesses que vão das elites oligárquicas brasileiras ao "grande
irmão" do Norte. Como muito bem resume Pepe Escobar numa frase quase
minimalista, "o senador paperboy (entregador de recados, Aloysio Nunes
Ferreira) foi enviado para dizer ao Departamento de Estado norte-americano que
tudo está ocorrendo conforme o planejado", logo após o 17 de abril.
É fato que, como afirma Wadih Damous, com quem conversei hoje (leia aqui), o governo Dilma "sofreu um cerco poucas
vezes visto no Brasil", comparável às blitze que vitimaram Getúlio em 54 e
João Goulart em 64. Juntando as sempre lúcidas abordagens de Escobar e Damous,
é óbvia a conclusão de que nem de longe se pode minimizar a ferocidade e poder
de fogo dos interesses que estão por trás do golpe.
No entanto, a nenhum lugar se chegará se a esquerda,
particularmente o petismo, se refugiar na análise do eu-sou-a-vítima, na
autocomiseração e nas justificativas binárias para a iminente
derrocada de mais um governo popular no Brasil. A história é dialética. Sem
autocrítica, os desdobramentos da tragédia política serão maiores. Mais uma vez, recorro
a Sartre: "Não há vítimas inocentes".
Damous, embora
ressaltando o que chamo de ferocidade dos golpistas, daqui ou da
"América", não se exime de falar de um dos maiores erros dos governos
Lula e Dilma: as nomeações feitas para o STF por ambos os presidentes. "De
fato, o governo errou nas nomeações, desde Lula. Errou praticamente em todas as
nomeações para o Supremo Tribunal Federal e para os tribunais em geral. Errou
muito, errou a não mais poder. Mesmo nas últimas nomeações, continuou errando.
Então o governo tem sua parcela de responsabilidade, sim, sem sombra de
dúvida."
Outro fator determinante para o sucesso iminente do golpe,
na opinião deste humilde blogueiro, foi a composição do medíocre ministério de
Dilma no início de seu segundo mandato. A insistência com Zé Eduardo Cardozo na
Justiça, que, embora um jurista de respeito, esteve longe de ser o homem com a
autoridade exigida pela crise iniciada em março de 2014, quando foi deflagrada
a operação Lava Jato. Ou, muito pior, a insistência em Gilberto Kassab, que
dispensa apresentações, no poderoso Ministério das Cidades, um homem que na
semana da votação do impeachment desembarcou do governo para auxiliar no golpe
com seu PSD, partido que a medonha articulação política de Dilma ajudou a criar
para, justamente, minimizar o poder do... PMDB!
Voltemos a Wadih Damous: "Polícia Federal e Ministério
Público ganharam uma autonomia exacerbada. E o próprio presidente Lula se
iludiu com isso, achando que com o que ele chama de republicanismo, que
fortalecer esses órgãos seria prova da imparcialidade do governo. Isso é
ingenuidade. Não existe imparcialidade no aparelho do Estado".
Ingenuidade é o termo. Em entrevista que fiz com Laymert Garcia dos Santos em março, ele comentou ser inadmissível que, três anos depois das
informações de que Dilma Rousseff era alvo de escutas, ela continuava fazendo
ligações não criptografadas. O comentário de Laymert se deu a propósito da
admiração do próprio Edward Snowden, ex-agente de inteligência da NSA, que, em
17 de março, postou em sua conta no Twitter: "Going dark é um conto de
fadas: três anos depois das manchetes de escutas de Dilma, ela continua fazendo
ligações não criptografadas".
Comentário de Laymert:
"No meu entender, o comentário do Snowden é pequeno, mas luminoso. Ele mostra o despreparo do governo brasileiro e da presidenta com relação ao próprio processo e a estratégia que está em curso de desestabilização, na medida em que ele comenta que três anos depois de ter sido revelado o grampo da NSA contra Dilma e outros chefes de Estado, ela ainda se comunica sem criptografia. Significa que isso não entrou no âmbito do governo, dos políticos ou da máquina do Estado, que precisava ter uma precaução de defesa, e nada foi feito nesse sentido.
"No meu entender, o comentário do Snowden é pequeno, mas luminoso. Ele mostra o despreparo do governo brasileiro e da presidenta com relação ao próprio processo e a estratégia que está em curso de desestabilização, na medida em que ele comenta que três anos depois de ter sido revelado o grampo da NSA contra Dilma e outros chefes de Estado, ela ainda se comunica sem criptografia. Significa que isso não entrou no âmbito do governo, dos políticos ou da máquina do Estado, que precisava ter uma precaução de defesa, e nada foi feito nesse sentido.
"Não existe uma leitura do que está acontecendo, por parte do
governo, nem do PT, nem da esquerda como um todo. As pessoas se espantam
com o processo, ficam abismadas com o grau de violência, mas não estão se
preparando para se defender antes das coisas acontecerem. O governo não tem uma
visão estratégica sobre o que está acontecendo".
Concluímos assim, para voltar a Pepe Escobar, em texto da
semana passada, já citado acima (leia aqui: The Empire of Chaos Strikes Back):
"Em Washington, o senador paperboy murmurou, 'vamos explicar que o Brasil não é uma república de bananas'. Bem, não era,
mas agora, graças às hienas da Guerra Híbrida, é. Quando você tem um homem
(Eduardo Cunha) com 11 contas bancárias ilegais na Suíça, citado na
documentação do Panamá Papers, e sob investigação do Supremo Tribunal
Federal, que controla o destino político de uma nação inteira, você tem uma
república de bananas. Quando você tem um juiz provinciano (Sérgio Moro)
hipócrita ameaçando prender o ex-presidente Lula por um apartamento modesto e
um sítio que ele não possui, mas ao mesmo tempo é incapaz de colocar um dedo
sobre Brutus Dois (Eduardo Cunha), ao lado de grande parte dos pomposos juízes
do Supremo Tribunal, você tem uma república de bananas".
Só para esclarecer. Segundo Pepe Escobar, Brutos Um é Michel
Temer.
4 comentários:
texto lúcido, Edu. sem rever sua história e planejar seu futuro, vai ficar difícil falar em esquerda no Brasil.
grande abraço,
teresa
Ótimo post, é real...tipo "é Democracia, não precisamos nos preocupar com nada, é assegurado". Agora vê-se que a Democracia está sendo violentada, não teve a guarda necessária...
É enfadonho repetir que a esquerda perdeu sua grande oportunidade de governar com o povo. Não basta divulgar os grandes feitos relacionados aos avanços conquistados nos programas sociais, pois aqueles não diretamente beneficiados por esses avanços não se solidarizam. Também não bastam apenas programas sociais, não somos um país apenas de necessitados, ainda que o número de cidadãos em carência extrema seja grande e vergonhoso, e precise mesmo de muitas décadas de um olhar mais dirigido e cuidados prioritários. Mas para alcançar a todos é preciso se fazer ouvir a todos, e preferencialmente sem ser esta a última alternativa. Somos tão grandes e com tantas possibilidades de desenvolvimento por explorar, que um efetivo estímulo a essas possibilidades de desenvolvimento poderia ter resultado num cenário bastante diferente do atual. Mais teria valido a pena um governo de esquerda, ainda que num período bem menor que esses treze anos, que de maneira extraordinária e inovadora tivesse tentado cumprir seu mandato com a participação e conhecimento didático de suas ações junto a população (evidentemente com a ajuda de uma mídia pluralizada), e que por isso e ainda assim tivesse sido apeado pelas artimanhas e canalhices fartamente demonstradas nesse episódio de golpe, do que sua permanência por esses pouco mais de treze anos sem essa proximidade com a população, pois seguramente estaríamos mais politizados e isto faria a grande diferença nos governos porvir. É utópico? Pode ser. Em meio a tanto pesadelo, a trégua é sonhar.
A foto é maravilhosa!
O texto é agudo. Falta noção do big picture.
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