segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

A adolescência segundo J. D. Salinger e John Fante


Um dos prazeres da leitura é a comparação. Comecei o ano lendo 1933 Foi um Ano Ruim, de John Fante, e não houve como não me lembrar de um dos maiores clássicos da literatura norte-americana, O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger. Ambos narram, em primeira pessoa, a história de adolescentes.

Adolescentes, como se sabe, são criaturas problemáticas, em transição. Não sabem o que querem ou, se sabem (ou pensam saber), têm certeza absoluta dos objetivos, mesmo que a realidade teime em desmentir seus sonhos. Às vezes têm todas as certezas do mundo. Outras, todas as dúvidas do mundo. Muitas vezes têm certezas demais e dúvidas de menos, maneira inconsciente de superar as inseguranças.

Salinger
O personagem de Salinger é Holden Caulfield, um garoto de 17 anos, de família rica (ou classe média alta), que não vê sentido na vida, na escola que frequenta na Pensilvânia, nos amigos e professores, nos valores burgueses onde se forjou, no futuro ou no passado. Não tem ambições e vive esmagado pela angústia. É um niilista. Mas é capaz de amar: ama seus irmãos, principalmente o que já morreu e a menininha caçula, a encantadora Phoebe. Pólos inatingíveis e opostos: o morto e a infância que não volta mais. Apesar de tudo, é um rapaz sensível e incapaz de fazer o mal.

Já Dominic Molise, de Fante, também de 17 anos, é uma figura socialmente muito diferente, para dizer não dizer o oposto, de Caulfield. Molise é pobre, filho de um pedreiro nascido na Itália, assolado por dúvidas e angústias adolescentes, mas tem uma certeza inabalável: a de que será um grande jogador de beisebol. Nesse sentido, o personagem é muito identificável com milhões de crianças e jovens que sonham em ser jogador de futebol, um grande astro do rock ou da MPB e acreditam que nasceram predestinados ao sucesso até que, cedo para uns, tarde para outros, descobrem que são apenas pessoas comuns, como todos nós.

Fante
A narrativa de 1933 Foi um Ano Ruim é direta e sem rodeios de linguagem, à tradição de Hemingway e Bukowski, com sua poesia seca. Porém, o livro não conta apenas a história do jovem, pobre e sonhador, Dominic Molise, mas o enquadra no contexto politizado e feroz dos Estados Unidos da depressão pós-1929, onde famílias como a dele foram empurradas para a pobreza sem remédio. O conflito capital-trabalho é claro e permeia o romance, que, aliás, não é de modo algum panfletário ou engagé, o que quase sempre é característica da literatura menor e desimportante, já que os grandes escritores de ficção, de modo geral (salvo raras exceções – como Sartre), não se submetem à História, mas a transcendem – daí a imortalidade dos clássicos. O livro de Fante transcende o próprio contexto histórico.

Mais sofisticado, O Apanhador no Campo de Centeio, cuja narrativa se desenvolve em 1949, difere do livro de Fante, entre outros aspectos, porque explora com maestria um recurso de que poucos são dotados: a ironia, esse legado que nos deixou Kierkegaard. Como nos ensina o mestre dinamarquês, a ironia não é uma solução fácil que você coloca numa frase, mas é o próprio espírito de uma obra. Portanto, é difícil você pinçar uma frase ou outra para ilustrar o caráter irônico de uma obra: a ironia está na obra, a envolve como um manto. Mesmo assim, apenas a título de exemplo, destaco isso, dito pelo personagem Holden Caulfield: “Magnífico. Se há uma palavra que eu odeie é magnífico”.

Ou esta passagem:

Puxa, depois que a gente morre eles fazem o diabo com a gente. Tomara que quando eu morrer de verdade alguém tenha a feliz ideia de me jogar num rio ou coisa parecida. Tudo, menos me enfiar numa porcaria dum cemitério. Gente todo dia vindo botar um ramo de flores em cima da barriga do infeliz, e toda essa baboseira. Quem é que quer flores depois de morto? Ninguém”.

Já o personagem de Fante não tem tempo para ironia – e nem o autor maneja esse recurso. A poesia está na realidade. O Dominic de Fante é um prisioneiro da realidade; o Holden Caulfield de Salinger a despreza e odeia. O primeiro, filho de imigrante italiano, é católico; o segundo, um cético.

Seja como for, é um exercício interessante conhecer a adolescência segundo um e outro escritor. Tema que foi também abordado na obra de um dos maiores mestres da literatura, Gustave Flaubert, no romance Novembro, cujo protagonista é obcecado pelo Oriente mas não consegue abandonar o tédio de seu próprio quarto. Mas ficarei no critério de me restringir aos norte-americanos, ao século XX. O adolescente de Flaubert soaria deslocado, aqui.

O Apanhador no Campo de Centeio – o que muitos observam como se fosse um atributo do próprio livro – é dotado de uma aura “maldita”, já que era o livro que o assassino de John Lennon, Mark Chapman, tinha consigo quando matou o ex-beatle com cinco tiros. Um estigma que a obra-prima de J. D. Salinger não merecia.


Jerome David Salinger nasceu em Nova York, em 1° de janeiro de 1919, e morreu em Cornish (New Hampshire), em 27 de janeiro de 2010. O livro O Apanhador no Campo de Centeio foi publicado em 1951. No Brasil, é encontrado em belíssima edição da Editora do Autor.








John Fante era filho de italianos. Nasceu em Denver, em 8 de Abril de 1909, e morreu em Woodland (Califórnia) em 8 de Maio de 1983. 1933 Foi um Ano Ruim foi publicado postumamente, em 1985. É editado aqui pela L&PM, em edição pocket.

2 comentários:

marco antonio ferreira disse...

...comparar, relacionar, confrontar: pensar. É engraçado que um nega a realidade, outro é prisioneiro dela.Também engraçado, que o termo realismo é típico, ou nasce, no sec. 19 com a ciência; que compara, relaciona,...século de Flaubert. Que Sartre analisa na obra O idiota da família; um neurótico que escapa ou supera sua insegurança criando,escrevendo obras que transcendem o tempo, a história e a realidade.A sua resenha não é magnífica, afinal... mas é muito boa para inaugurar o ano, feliz ano novo!

Eduardo Maretti disse...

Obrigado, Marco. Inauguro o ano melhor, com tua impressionante capacidade de perceber (ou entender) tudo.