Para Marco Ferreira e Luciano Oliveira
Instituto Ayrton Senna
20 anos
No dia 1° de maio de 1994 bilhões de pessoas assistiram via satélite ao acidente que matou o piloto Ayrton Senna na pista de Imola, na Itália. Num primeiro momento, para quem viu a morte ao vivo, o mais impressionante foi o paradoxo da cena: depois do impacto e de os restos do carro "navegarem" a esmo às margens da pista por alguns segundos, a visão do bólido estático transmitia uma estranha e indefinível sensação de silêncio e imobilidade. A primeira expectativa era a de que, como é comum em acidentes com esses quase perfeitos conjuntos técnicos dos quais, por assim dizer, o homem é parte integrante, o piloto saísse andando do acidente, embora a violência do impacto no muro, no momento mesmo, tenha também causado a impressão de que não era mais um desses casos tornados milagrosos pela indestrutível fibra de carbono que envolve o piloto no carro. Mas o que se via era a cena do bólido estático, interminavelmente estático: uma espécie de "desrealização" (termo que Laymert Garcia dos Santos usa em outros contextos) da velocidade. O paradoxo.
No dia 1° de maio de 1994 bilhões de pessoas assistiram via satélite ao acidente que matou o piloto Ayrton Senna na pista de Imola, na Itália. Num primeiro momento, para quem viu a morte ao vivo, o mais impressionante foi o paradoxo da cena: depois do impacto e de os restos do carro "navegarem" a esmo às margens da pista por alguns segundos, a visão do bólido estático transmitia uma estranha e indefinível sensação de silêncio e imobilidade. A primeira expectativa era a de que, como é comum em acidentes com esses quase perfeitos conjuntos técnicos dos quais, por assim dizer, o homem é parte integrante, o piloto saísse andando do acidente, embora a violência do impacto no muro, no momento mesmo, tenha também causado a impressão de que não era mais um desses casos tornados milagrosos pela indestrutível fibra de carbono que envolve o piloto no carro. Mas o que se via era a cena do bólido estático, interminavelmente estático: uma espécie de "desrealização" (termo que Laymert Garcia dos Santos usa em outros contextos) da velocidade. O paradoxo.
É de se supor que as duas primeiras "espécies" de
pessoas tenham parte de razão.
A Fórmula 1 é uma dos mais importantes emblemas do
desenvolvimento técnico desde que se criou o motor a explosão entre o fim do século
passado e início deste. Muitas das tecnologias desenvolvidas para o aumento do
desempenho dos bólidos nas pistas são posteriormente assimiladas, com as
transformações e adaptações necessárias, aos conjuntos técnicos fabricados em série
pelas grandes indústrias. A Fórmula 1 é um laboratório.
Os pilotos, nesse sentido, não são meras cobaias: sabe-se,
por exemplo, que não basta a um bom piloto saber conduzir o veículo, somar
pontos com sua habilidade, conquistar títulos como nos esportes tradicionais.
Os mais requisitados são aqueles capazes de apreender, decodificar e trabalhar
a informação (usando aqui o conceito de Simondon) no sentido do pleno
desenvolvimento, da otimização do carro, uma otimização extrema.
Não poucas vezes divulgaram-se opiniões segundo as quais
Ayrton Senna era o mais "perfeito" piloto já visto. É possível que
fosse. Muitos eram os que assistiam às provas unicamente pela sua presença nas
pistas e que depois de sua morte perderam o interesse por elas. Mesmo os
leigos, semileigos ou simples amantes de esportes em geral percebiam que havia
algo incomum em Ayrton Senna. Ao contrário de outros, ou apenas talentosos ou
apenas bons "desenvolvedores" de carros, o piloto brasileiro possuía
ambas as qualidades: o talento, a mais espantosa habilidade e perícia, talento
com o qual proporcionou momentos espetaculares nas pistas, realizando manobras
impossíveis ou tirando do seu carro um desempenho acima do normal em situações
mesmo de avaria técnica (era, apenas para citar um exemplo, conhecido como
imbatível correndo sob chuva); e também era raro conhecedor da
"linguagem" da máquina, de suas necessidades intrínsecas.
Se a ideia de Gilbert Simondon é a supressão da dicotomia
homem versus máquina, então pode-se dizer que a "função integradora da
vida" por ele almejada foi quase de
modo absoluto encarnada pelo conjunto homem-máquina da Fórmula 1 e essa integração
foi atingida pelo piloto brasileiro mais do que qualquer outro: é inquestionável
que seu talento incomum se aliava à capacidade sobre-humana de interpretação
das informações. O talento de um Nigel Mansel, por exemplo, jamais pressupôs o
conhecimento técnico (o piloto inglês era um conhecido mal intérprete da
linguagem do carro, que, com a telemetria, deixou de dizer respeito apenas à
mecânica). O brasileiro Nelson Piquet, que também possuía o talento aliado ao
conhecimento técnico (foi um dos maiores "acertadores de carros" da
história da Fórmula 1) não tinha, porém, uma terceira qualidade, a mais rara e
impressionante.
Não
foram apenas o talento e o conhecimento técnico os responsáveis pelo aparecimento
do mito Ayrton Senna. Havia também nele um carisma que alguns consideram místico,
uma obsessão apaixonada por algo interior e além da realidade em que vivia. O
amor à velocidade era para ele como que mágico, como se de alguma forma,
superando o tempo, submetendo-o, vencendo-o e a si mesmo constantemente,
procurasse um objetivo transcendente, a superação mesma de sua condição humana
e a do conjunto que formava com o carro. Seu orgulho não era facilmente
confundido com a vaidade. Ele próprio, aliás, encarregou-se de fomentar esse
misticismo, evocando o nome de Jesus Cristo em situações conhecidas. Se fosse
outra pessoa, poderíamos imputar a isso uma pura estratégia de marketing.
No caso
de Senna, suas características e o conjunto de situações que ele protagonizou
ajudam também a aumentar a aura de misticismo que cercam sua pessoa e sua
morte: o frequente olhar distante para lugar nenhum, o sorriso invariavelmente
triste, a espontaneidade com que, carregando a bandeira brasileira em algumas
grandes conquistas, elevou por efêmeros momentos o orgulho de um povo ferido e
humilhado, a crise de choro de 15 minutos que abateu-o na véspera da morte ao
saber que o piloto austríaco Roland Ratzenberger acabara de sofrer nos treinos
um acidente fatal, e seu estranho e longo olhar fixo para o carro, registrado
pelas câmeras minutos antes de iniciar-se a corrida em Imola. Há ainda
estranhas coincidências: como, por exemplo, o fato de ele ter morrido na mesma
curva em que no mesmo dia 1° de maio de 1987, portanto exatamente 7 anos antes,
o também brasileiro Nelson Piquet, seu declarado desafeto, escapou
milagrosamente da morte depois de chocar-se a 300 km por hora contra o muro da mesma
curva Tamburelo. E mais: como se essa coincidência não bastasse, como se o
Destino houvesse querido não deixar dúvidas sobre seus desígnios, Senna
conheceu a morte na 7° volta da corrida. Os cabalistas não considerariam, por
tratar-se do número 7, estas coincidências desprezíveis.
Há também
a ironia de suas posições nos tempos que precederam o acidente. Mais de uma vez
reclamou da automação sem limites a ameaçar o talento. Chegou a dizer que todos
os pilotos, com a informatização, seriam nivelados e a paixão de dirigir em
breve seria destruída pela tecnologia. A competitividade seria reduzida à
rapidez da contínua disputa pela superação tecnológica. Ele se referia à equipe
Williams (à época, era piloto da McLaren), cuja tecnologia desenvolvera em alto
grau recursos como a suspensão ativa (o que fazia com que o piloto não sentisse
as trepidações e o carro grudasse no solo), câmbio automático (é conhecida a
opinião de qualquer motorista comum sobre o prazer proporcionado pela mudança
de marchas, "o maior prazer de dirigir", segundo muitos), gasolina
potencializadora do motor já por si só o mais potente do "circo",
entre outros.
Pelo conhecimento e pelo talento, Senna sabia que essa evolução
tendia à automação absoluta, embora, provavelmente, o absoluto, como uma espécie
de utopia técnica, jamais fosse atingido (sendo apenas o horizonte da tendência),
mas o grau chegaria a um patamar muito elevado, ou seja, tendendo ao que
Simondon chama de "autômato" (Du Mode d'Existence des Objets
Techniques, páginas 139 e 140). Nesse caso, sua intuição previa um deslocamento
do equilíbrio homem-máquina, o desnivelamento em favor da máquina, enfim a
quebra da integração. Simondon diz que o autômato, "máquina
perfeita", é uma noção obtida pela passagem ao limite: sua margem de
indeterminação será nula, pois "poderá receber, interpretar ou emitir a
informação". E mais: "Ora, se a margem de indeterminação do
funcionamento é nula, não há mais variação possível; o funcionamento se repete
indefinidamente, e por consequência a interação não tem mais significação".
Essa era a tendência dos carros de Fórmula 1 em 1993.
Mas as tendências, quando Ayrton Senna já havia definido sua
ida para a mesma Williams cuja tecnologia criticara em nome do talento, mudaram
abrupta e radicalmente no início de 1994. Em nome do interesse pela competição,
que se esvaziava rapidamente graças ao desnivelamento entre as equipes, o grau
de desenvolvimento tecnológico foi não apenas interrompido como houve um
retrocesso, com a proibição de certos tipos de gasolina, da suspensão ativa e
outras “conquistas”. Ao iniciar a temporada, as equipes procuravam adaptar-se às
novas regras. A Willliams, a que mais sentiu as proibições exatamente porque já
se havia ajustado às inovações, entrou como que num vácuo técnico. Senna pegou
o carro nesse momento em que a Williams se viu envolvida de repente numa situação
imprevista, com a inversão do status técnico para a elevadíssima margem de
indeterminação subsequente. O austríaco Roland Ratzenberger, não por acaso, foi
vítima da mesma situação.
Por fim, o ritual fúnebre ajudou a consolidar o mito. Não se
pode negar a participação da mídia nessa consolidação. Mas, melhor do que a
racionalidade que nega a necessidade humana do mito, traduz melhor a situação a
frase do piloto Emerson Fittipaldi naquela semana: "O brasileiro não sabia
que gostava tanto do Ayrton". A sincera comoção, o luto da Nação
expressado pelas mais diversas pessoas (social e culturalmente) corroboram
essas palavras. A tristeza do País revelou algo como a gratidão catártica pela
grandeza catalisada por Senna, gratidão de um povo vilipendiado, e revelou também
que esse povo, mesmo humilhado, mesmo carente de "vitórias" no seu
miserável cotidiano, ainda tem orgulho de si mesmo. A energia gerada pela
comunhão nesse luto, dizem os místicos, não é desprezível. Foi dito por um
deles que a morte de Senna provocou um entendimento inconsciente da evolução e
das mudanças.
Ou terá sido tudo fruto do acaso? A inesperada união de
tantas criaturas diferentes em torno da morte é apenas um dado para análise
sociológica? Sabe-se que a união das pessoas em torno da mesma energia produz
efeitos poderosos. A partir desse ponto, não é possível especular. Se há desígnios
em relação a Ayrton Senna que nos escapam, eles continuarão sendo segredo dos
deuses. Se não os há, da mesma forma jamais ficaremos sabendo.
Nota
Este ensaio foi escrito em 1995, para um curso de pós-graduação que eu fazia na época, poucos meses depois da morte de Ayrton Senna. Ele contém uma visão talvez pessimista demais dos destinos do país que, hoje, 20 anos depois, não são mais exatamente aquelas.
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Um comentário:
Muito bom! E me parece muito atual, além de muito sensível à questão principal, que é o carater religioso de Ayrton Senna. Não de carater particular, mas universal. de encarnar a condição de herói de um povo, como lembrou Gil na época de sua morte. - não é por nada que Gil aceitou ser ministro de Cultura - Essa condição de santo e herói, - cristão, romano. - de fiel ao destino. A outra condição, de artista. A construção, se é que se pode dizer asssim, da arte no contato com o divino. Na perfeição da arte! A superação era para chegar ao Divino. A tecnologia é a suepração diária, sempre uma nova geração, e é sempre certa. A superação no encontro com o Divino,é mercadoria que não se repete, não se fabrica, ...não se mutiplica. Enfim mano, valeu! abraços.
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