sexta-feira, 3 de abril de 2015

O quintal da dona Juventude


Para Luiza



Capítulo 1

O Quintal
(Por Tania Lima, em algum dia do século passado)

O prenúncio de chuva inunda meu espírito de inquietação e o aprisiona de apreensão, emprestando-lhe o peso de um fardo. As ramagens, galhos e folhas da árvore situada na área central do quintal, que da janela investigo com os olhos imprecisos pela semi-escuridão, agitam-se numa coreografia hipnótica. Tento, em luta desigual, me desvencilhar da atração a que me submete o quintal e afasto-me resoluta da janela que emoldura o quintal. 

A convicção de não poder contra o poder da chuva amarra meus membros em impotência e mergulha meu peito em sufocação, e assim debilitada volto à janela para alimentar meus pulmões. E então aspiro o passado camuflado com o cheiro da grama molhada pela chuva diagonal, que já cai no quintal. Impalpáveis e encharcados fragmentos de história espalhados pelo quintal. Sem memória, e com a imaginação à solta, vou me apropriando do passado que não é meu e que é de todos nós, sem ser egoísta e unicamente de ninguém. 

Para além do quintal, transposto o muro, a imensidão; o infinito inalcançável. O abandono da solidão em liberdade onde fervilham bilhões de lembranças sem datas, impregnando as ruas vizinhas de melancolia, ganhando as avenidas, triunfando nos bares em boemia, cheirando a álcool, a cigarro, e a perfume de cravos e maracujás maduros; indo, embriagada e aliada ao vento noturno, levantar esvoaçante a saia da senhora que passa, e descobrir nas flácidas coxas frias, incontestáveis vestígios da mocidade passada e irremediavelmente perdida. Sobre os ombros recurvos o peso dos anos; e sob o semblante, em lugar da tranquilidade de quem aprendeu a não dar tanta importância aos assuntos mundanos, sinais da mesma angústia antes e eternamente experimentada. Em homenagem a ela, chorosa, a chuva de novo cai, impiedosa a lhe martelar nos ouvidos: por que te deixaste envelhecer, mulher? 

À mercê da chuva, agora serena, eu e o quintal, ambos devastados pela chuva. Incrédula, nele vejo, tomando forma na quase escuridão, a imagem de três meninos incólumes debaixo da chuva que é presente e incapaz de molhar o passado. Louca, esgotada, sem tempo e em vão estendo a mão através da janela, querendo voltar ou querendo trazê-los, nem sei... só sei que inexplicavelmente sinto saudade.


Capítulo 2
(Quaresma, 2015)

Em 28 de março de 2015 01:17, Alexandre Maretti escreveu: 

Bom, venho a informar-lhes que hoje,  nossa saudosa "Dona Juventude", como a Luiza chama a nossa velha árvore, que tanta sombra nos deu, foi sacrificada. Hoje, digo, dia 27. 

Não tivemos tempo nem de nos despedir dela, pois que, quando chegamos, já havia sido o feito e de nada sabíamos. Mas que assim então seja feita a vontade...um minuto para a Dona Juventude.


Date: Sat, 28 Mar 2015 12:21:13 -0300
Subject: Re: Dona Juventude
From: Carmem Luz 

Pô, lindo texto, Alê. Uma pena, pena mesmo. Adorei o nome que a Luiza lhe deu, Dona Juventude. Sei bem o sentimento sobre isso. Quando eu era ainda criança minha querida seringueira foi sacrificada. Cheguei da escola e vi o feito. Ainda lhe restavam o tronco e os galhos mais grossos, subi nela onde eu costumava estar, quase sempre, abracei um dos seus galhos e chorei muito, muito tempo.
Um minuto para a Dona Juventude... mas pelo resto das nossas vidas na memória.


Date: Sat, 28 Mar 2015 23:52:42 -0300
From: Paulo Maretti

Nossa!! me deu uma amargura agora. Me sinto como se tivesse perdido um ente. Estou chocado!
Me lembrei de um filme que vi um dia, "A árvore", que conta a história de uma garotinha (e de uma árvore) que vivia com sua família no interior acho que da Austrália. O pai dela morre e ela põe na cabeça que o espírito do pai foi morar na enorme figueira em frente à sua casa. É bonita a história e hoje me serviu um pouco de consolo.


De: Gabriel Maretti
Enviada: Sábado, 28 de Março de 2015 18:08

De qualquer maneira, faltará oxigênio no quintal.
Parabéns à Lu pelo nome. Ela está bem?
Fiquei triste. Mas não tem problema, tudo se canaliza na poesia e na música, que são mais reais e precisas do que a realidade.
Alê, o I Ching diria que é hora de sair de sob a nuvem escura e procurar o Sol.


Publicado na sexta-feira santa de 2015

Um comentário:

Gabriel Megracko disse...

"Maldita nascente, que atrapalha o asfalto. Malditas bicicletas, que atrapalham os carros. Maldito protesto, que atrapalha o trânsito. Maldito parque, que atrapalha os prédios. Malditos índios, que atrapalham o progresso. Maldito rito ambiental, que atrapalha as obras. Maldita vida, que atrapalha a morte."

Camila Pavanelli de Lorenzi