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Juan José Morosoli. Este é o nome de um escritor uruguaio que
nasceu em 19 de janeiro de 1899, em Minas (capital do departamento de Lavalleja),
e morreu em 29 de dezembro de 1957, na mesma cidade.
Acabo de ler A Longa Viagem de Prazer, infelizmente único
título do autor publicado no Brasil. A pequena coletânea de contos da editora
L&PM revela (e para mim foi mesmo uma revelação) uma literatura densa e
impressionante. Os relatos tratam da vida simples de gente simples, num cenário
regionalista do qual o autor dá testemunho.
Sob certos aspectos, é possível fazer um paralelo entre a
literatura deste pequeno e precioso livro com a do nosso Guimarães Rosa. Ambos
falam de um tipo de gente cuja simplicidade esconde vastidões da alma humana.
Ambos falam de criaturas solitárias que parecem não ter mais lugar no mundo
ocidentalizado no qual as modernidades, lenta e cruelmente, foram apagando a
pureza, cultural e espiritual, mesmo que essa pureza seja bruta para os padrões
da civilização que a extinguiu.
Os relatos de Morosoli não são descritivos. Neles, o autor não
opina, não dirige e não afirma. Não descreve. Os que falam, e com extrema economia (um pouco como
os nossos caipiras ou sertanejos, vá lá), são personagens que às vezes não têm como
interlocutor senão um burro ou um cavalo, ou no máximo homens e mulheres que com eles dividem a solidão, e, no entanto, muito à vontade nesse seu pequeno e suficiente universo. Em Morosoli, a solidão fala.
Citei Rosa porque é uma analogia óbvia, mas é preciso dizer
que, ao contrário da complexa narrativa do escritor das nossas Minas Gerais, a do
uruguaio não se propõe a discutir a linguagem e nem com isso jamais se
preocupou. A linguagem são pura e simplesmente os homens de sua terra.
É Morosoli quem define sua própria obra:
"(...) los gauchos no son clásico gauchos. Imagínese.
No hay una sola doma de potro. No hay un solo baile. No hay una sola parada de
rodeo. Guitarreros menos. En realidad no pasa nada. Son unos trabajadores que
sufren el campo aquel. (...) El pueblo de mi libro es igual a muchos. (...) Yo
sé que mucha gente cree que estas miserias las inventan los noveleros. Yo
escribo lo que veo."
A doutora e professora da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, na pequena introdução à edição da L&PM (com tradução de Sérgio Faraco), diz que os contos do livro
são “escritos com economia verbal invejável, fruto, com certeza, de muito trabalho
e revisão”. “No entanto – continua ela –, o leitor não deve se deixar enganar
pela aparente simplicidade da forma: o andamento narrativo é sempre
surpreendente.”
A solidão dos personagens é onipresente e às vezes cruel. A
singeleza perpassa as páginas. Como em uma passagem em que um personagem leva alguns
gauchos para conhecer o mar que nunca viram. Para ele, o mar é sobrenatural em
seu mistério e vastidão, e ele quer compartilhar com eles esse sentimento
epifânico, inexplicável, único, de presenciar essa obra sem autor, que “é uma
cosia soberba e bárbara... Pra mim, o mar não tem explicação”, diz esse
personagem. No entanto, seus companheiros de viagem não conseguem compreender
essa sensação do infinito. “Que tal?”, pergunta o extasiado Rodriguez, homem
simples de alma poética, querendo saber do outro o que ele acha do mar que
nunca vira. “Pois... é pura água, não? Mais ou menos como a terra, só que é
água”. E assim, um por um, seus amigos vão definindo o mar segundo suas
concepções simplórias, telúricas, toscas, incapazes de compreender, para
espanto e sofrimento daquele que, por sua vez, não consegue entender a
ignorância dos outros diante do infinito, embora Rodríguez também não consiga
expressar por palavras a grandeza do que quer definir e não pode.
Não é por acaso que dois dos relatos da coletânea são
intitulados “A longa viagem de prazer” (que dá título ao pequeno volume) e “A
viagem até o mar”.
A viagem, em Morosoli, parece assumir uma dimensão metafórica,
quase como um sonho, para criaturas, “viventes”, que não sabem senão as coisas
cotidianas de seu rincão, onde a rotina se resume às coisas mais básicas:
acordar, fazer o mate, cuidar do cavalo... “Umpiérrez despertava, começava o
mate, acendia o fogo e preparava um churrasquinho nas brasas. Comia, ia para o
forno de tijolos onde trabalhava. Ao meio-dia separava-se do grupo de
cortadores que faziam o fogo em comum, acendia seu próprio fogo, tomava mate,
encostava uma carne e almoçava.”
Em uma palavra, uma maravilha essa literatura que
recém-conheço.
Pena que, exceto pela edição da L&PM, os editores brasileiros
ainda não descobriram Juan José Morosoli. Eu vou tratar de comprar outros
livros dele, em espanhol.
3 comentários:
Um belo texto e outra linda homenagem. E esta muito merecida, já que no Brasil (e na enorme parte do mundo fora do Uruguai) Morosoli é praticamente um anônimo. Acho que o post define muito bem a literatura do uruguaio, o que saudosamente me poupa de fazê-lo e que já está feito melhor do que eu faria. Há por isso uma limitação de ostentações elogiosas a fazer, especialmente pela economia de prolixidades do texto do gaúcho, economia que falta (por querer falar sobre como é bonito seu texto) aqui em mim, que fiquei também bestificado com a deliciosa sensação de eternidade que Juan apresenta para o mundo; apresenta e grava, graças a Deus, para ser compartilhada entre... bom, "segundo" ele próprio... ah, como seria bem lido e sentido justamente pelos que não podem lê-lo. Arte pura, por isso.
Depois desta bela resenha, fiquei com uma baita vontade de ler o uruguaio. Vou atrás!
Eu também vou
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