O ataque do louco Jared Loughner no último sábado, que deixou seis mortos e de 12 a 14 feridos, entre os quais a deputada democrata Gabrielle Giffords, em Tucson, Arizona, me inspirou a escrever uma nota sobre o livro
A Sangue Frio, de Truman Capote (1924-1984). Não é propriamente um “gancho”, pois são crimes muito diferentes. De qualquer maneira, o ataque do louco do Arizona me remete por óbvia livre-associação a essa obra-prima da literatura norte-americana.
Nos Estados Unidos, as armas fazem parte do chamado american way of life, e os crimes reais ou fictícios pontuam a história desse gigantesco país: nas mortes de Lincoln e Kennedy às vidas cotidianas de pessoas comuns; nas histórias de personagens do cinema como em
Easy Rider e
Fargo, filmes dirigidos respectivamente por Dennis Hopper e os irmãos Coen, a uma celebridade como John Lennon, assassinado na frente do edifício Dakota. (Ok, no Brasil também há crimes e loucos, alguém pode objetar; mas aqui, geralmente, o crime está muito mais associado a questões sociais, por exemplo, do que lá, onde há uma quantidade enorme de assassinatos “sem motivo aparente”, muito devido à facilidade de se comprar armas e munição.)
Voltando à história real narrada em
A Sangue Frio (acima, a manchete do jornal
Garden City Telegram sobre o crime). Em 15 de novembro de 1959, dois ex-presidiários desocupados (Richard “Dick” Eugene Hickock e Perry Edward Smith) executaram um plano que terminou com o quádruplo assassinato de pai, esposa e um casal de filhos adolescentes na fazenda do senhor Herbert William Clutter, numa cidadezinha minúscula chamada Holcomb, no estado do Kansas. Depois de ler uma notinha no
New York Times sobre a tragédia, Truman Capote se propôs a tarefa de escrever sobre a história, na qual mergulhou a ponto de ter dedicado seis anos a ela, fazendo anotações e escrevendo o livro a partir de sua convivência com os personagens do crime, inclusive os assassinos, dos quais a obra traça um perfil humano, familiar e psicológico-psiquiátrico, além do retrato da comunidade local: a chefe da estação ferroviária, a dona do bar, o policial encarregado de investigar o crime, a melhor amiga da adolescente Nancy Clutter, uma das vítimas, seu namorado etc. Ele fez a reportagem, que virou o livro, para a revista
The New Yorker.
Os assassinos Dick Hickock (esq.) e Perry Smith
Muitos são os motivos que levam uma pessoa a atravessar a fronteira que a leva a matar um semelhante. Mas é muito impressionante como o acaso pode levá-la a se afastar ou definitivamente atravessar a fronteira. Impressiona também como o autor, ao construir seu “jornalismo literário” (new journalism), sem nunca falar na primeira pessoa, e sim na terceira, como observador, distanciando-se da narrativa, transforma os dois criminosos em personagens, e esses personagens-monstros em simples seres "humanos, demasiadamente humanos" (Nietzsche). Um (Perry, descendente de um irlandês com uma índia cherokee) desprezado pela sorte e pelo destino, que passou a vida entre internatos onde era espancado rotineiramente; o outro (Dick, típico jovem americano de classe média) levado ao mal por algum motivo insondável de sua mente (ou espírito?).

Na história de
A Sangue Frio, alguns, como a esposa do subxerife, se compadecem dos condenados, enquanto outros perguntam: "e que compaixão esses monstros tiveram daqueles que mataram?" (na foto, os quatro Clutter assassinados). Capote foi acusado por alguns de ter romanceado a história, a favor dos assassinos, principalmente Perry Smith, uma pessoa que misturava em sua complexa personalidade a sensibilidade artística e o instinto assassino. Como não existe narrativa jornalística que seja de fato imparcial (é só olhar os jornais e revistas nas bancas) não me parece que essa seja uma acusação válida. O autor se torna um interlocutor privilegiado de Hickock e Perry.
No Kansas, os condenados à morte cumpriam a pena na forca. Numa "cerimônia" de execução como essa (pois é disso que se trata) tem de haver testemunhas. Truman Capote, que não tinha direito legal de assistir aos enforcamentos, foi indicado pelos condenados como testemunha das execuções. É que, com o convívio durante todo o processo, os criminosos passaram a ter no autor um interlocutor em quem passaram a confiar. Segundo o bom e esclarecedor posfácio de Matinas Suzuki no livro da Companhia das Letras (em oposição ao pretensioso e egocêntrico prefácio de Ivan Lessa), Capote assistiu ao primeiro enforcamento (de Hickock), mas não teve condições psicológicas de ver o segundo.
Em seu diário, já no corredor da morte, Perry Smith escreveu: "Os ricos nunca são enforcados. Só os pobres e sem amigos. Acho um absurdo tirar a vida de uma pessoa desta maneira. Não acredito na pena de morte, nem do ponto de vista moral nem legal”.
Smith e Hickock foram enforcados na madrugada de 14 de abril de 1965.
Em tempo, não assisti ao filme
A Sangue Frio (In Cold Blood, 1967), direção de Richard Brooks. Raras vezes tenho saco para ver um filme baseado em um grande livro. A propósito de o "jornalismo literário" ter sido inaugurado por Capote, discordo. Com esse nome ou não, muitos livros foram escritos sob esse conceito. O principal deles, entre nós, é o maravilhoso e monumental
Os Sertões, de Euclides da Cunha, publicado em 1902.
Leia também:
Impressões sobre o livro Ensaios, de Truman Capote
O leitor Jared Loughner
Para terminar, voltando ao louco do Arizona. Segundo matéria da Folha de S. Paulo, Jared Loughner, de 22 anos, que atirou na deputada democrata no último sábado entre outras vítimas, tem em sua lista de livros favoritos Revolução dos Bichos, Admirável Mundo Novo, O Mágico de Oz, Fábulas de Esopo, Odisseia, Alice no País das Maravilhas, Manifesto Comunista, Sidarta, O Velho e o Mar, Mein Kampf e A República, entre outros.
Atualizado às 17h10