"Agora eu só queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe." (Clarice Lispector)
CRÔNICA DE VERÃO 2
Episódio 1
Eu costumava dizer com orgulho que moramos neste apartamento
há mais de seis anos sem que nenhuma mísera barata tivesse aparecido por aqui.
Sim, mais de seis anos. Estava quase me sentindo uma pessoa abençoada. Mas eis
que de repente, algo aconteceu, na primeira semana de dezembro de 2014.
Eu estava pra sair de casa pra ir trabalhar quando me deu
uma leve vontade de ir ao banheiro (necessidade número 2), e por prudência fui,
e fui ao banheiro da área de serviço, porque a zeladoria tinha ligado minutos
antes para informar que estava desligando a água do “banheiro social” por causa
de um serviço de manutenção.
Fui então ao banheiro etc. Puxei a descarga, meio de costas,
e quando me virei para fechar a porta do banheiro vi uma enorme barata. Mas,
estranhamente, estava morta, muito morta, completamente morta.
Fiquei chocado, pois nunca tinha aparecido uma barata neste
AP, nem viva, nem morta. Ela estava exatamente entre a porta, o tapetinho e a
privada, onde teria sido impossível eu não tê-la visto ao entrar no banheiro ou
enquanto eu estava ali, sentado.
Fiquei me perguntando: mas que diabo é isso? Peguei a pá e
joguei a barata pela janela (no grande jardim onde há muitas árvores no condomínio), sempre me perguntando: mas como essa barata morta
apareceu aí se não estava aí quando eu entrei no banheiro pra sentar na
privada, num lugar tão visível que teria sido impossível eu não tê-la visto ao
entrar?
Pensei no enigma, que exigiu de mim um esforço digno de
Sherlock Holmes. A hipótese daquele exemplar da mais asquerosa das criaturas
ter sido envenenada em alguma dedetização no condomínio, ter vindo tonta,
subindo, até morrer ali, não era plausível, já que ela não estava lá quando
entrei no banheiro.
Então, fez-se a luz e entendi. Antes de ir ao banheiro (estava
meio frio pela manhã, apesar de ser dezembro), eu coloquei sobre o ombro uma
blusa de lã azul que tinha levado à praia, nas férias, mas que ficou na mala
sem uso. Como na praia tem muitas baratas e usei e abusei de um veneno de
inseto, concluí, como um verdadeiro Hercule Poirot, que essa barata morta
estava, já morta, desde a praia, dentro da blusa, envenenada pelo monte incalculável
de baygon que esguichei nas dependências da casa da praia – pois num dos
primeiros dias uma cena de horror aconteceu, quando descobrimos que baratas, muitas, de repente corriam pelo chão da
cozinha num certo início de noite, e foi aquela cena dantesca de baratas
correndo até que conseguimos destruí-las todas, após descobrir que tinham feito
um ninho. Enfim, a barata que apareceu morta no apartamento deve ter se
escondido envenenada na blusa, e lá ficou. E justamente na hora em que me
sentei na privada o maldito inseto morto caiu da blusa ali, por trás de mim,
pela manga da blusa, pelas costas da blusa, sei lá.
Foi o que concluí.
Episódio 2
Está certo que a barata estava morta, mas aquilo me
perturbou. Pois, morta ou não, era uma barata. Algo tinha querido dizer que já
não éramos mais invulneráveis em nosso AP. Desde então, o apartamento nunca
mais foi o mesmo.
E, de fato, como se aquele cadáver marrom fosse um aviso, cerca
de 40 dias depois, num sábado de um calor insuportável, tarde da noite, eis que
estava ali, na porta do armário da cozinha, vinda da escuridão da noite
diretamente pela janela escancarada, uma gigantesca barata voadora, espreguiçando
suas asas prontas para voar, logo acima de uma torta quentinha recém-tirada do
forno. Com nossa súbita presença, lógico, ela voou. E todo mundo sabe o que
significa uma barata voando numa cozinha de apartamento. Nem o mais bravo
soldado mantém a dignidade.
A excomungada por fim se enfiou por trás de uma prateleira. Fomos
tirando objeto por objeto, cada um com o cuidado e o temor de estar cutucando a
mais terrível fera. Por fim, foi possível vê-la atrás de um vidro vazio,
enorme, encaixada entre o frasco e a parede como se sempre tivesse estado ali.
Para não correr o risco de ver o demônio de repente voar (é melhor cinco baratas
tontas correndo no chão do que uma voando), já fui esguichando o veneno, com
tanto gosto que poderia ter danificado a bomba que ejeta a nuvem de líquido
mortífero. O animal asqueroso finalmente caiu no chão, correu, mas eu não
esmoreci e continuei esguichando a nuvem, até que ela virou de costas, se
debateu, e finalmente expirou (ao que parece, pois, como se sabe, as baratas
têm uma característica assustadora: elas podem ressuscitar). Pelo sim, pelo
não, coloquei-a na pá e atirei-a pela janela do oitavo andar.
Episódio 3
Foi hoje (12), menos de dois meses e meio após o funesto
aparecimento da barata morta e pouco menos de um mês depois da barata voadora.
Por falta de opção melhor, comíamos uma pizza na sala
quando, de repente, ouço um grito surdo, não escandaloso, mas de pavor,
enquanto vejo algo voando baixo pela sala, que pude perceber ser um inseto
ligeiramente grande, mas não muito.
Podia ser um besouro, mas imediatamente eu soube: era outra
barata. Outra! Seis anos sem nada, nenhuma, e de repente, em 70 dias, uma morta
e duas vivas!
Esta, embora menor, também era voadora (é melhor 5 baratas tontas
grandes no chão do que uma média voando). E a maldita voou da sala para dentro
do quarto. Já fiquei imaginando ter que dormir na sala ou, tarde da noite,
desmontar o quarto atrás do famigerado inseto em algum dos infinitos cantos,
dobras de roupa, interior de sapatos, por trás do colchão ou qualquer outro
esconderijo onde pudesse entrar. Porque, se tem uma coisa que eu não faço, é
dormir com uma barata no quarto. Mas, por sorte, ela estava na parede.
Sabem qual é a palava que designa fobia de baratas? Catsaridafobia. Ou seja, até o nome para esse medo causa repugnância.
Quando tirei o chinelo para destruí-la, ela voou, e veio na
minha direção. Era só acertá-la em cheio, estava fácil, afinal sou ágil e mato
até as ligeiras moscas com facilidade. Mas acontece que baratas são como
espíritos que se materializam para perturbar as pessoas, e então errei a
chinelada e, evidentemente, ela veio diretamente pra cima de mim, bateu na
minha perna e correu para um lado, enquanto, claro, eu fui para o outro. Acho
que não gritei, mas a única testemunha presente na casa (que havia gritado antes) afirma que sim.
Vi que ela se enfiou por baixo do criado-mudo. Peguei o
veneno e esguichei. Arrastei o móvel e... cadê? Nada. Vários minutos depois,
reapareceu correndo, embora tonta, na minha direção. Vi que esta era bem
nojenta, meio esbranquiçada. Mais veneno. Com gosto. Ela rodopiou, correu mais
um pouco e, filha da puta, entrou numa fresta do armário embutido, no canto da
parede. Enfiei o bico do baygon no buraco e injetei uma dose aparentemente
letal, até porque aquele buraco não tem saída, a não ser por onde ela entrou.
Mas a desgraçada não saiu. Ficou lá. Acredito que tenha morrido. Mas baratas
muitas vezes gostam de te deixar na dúvida. Mesmo mortas, como fantasmas em
forma de insetos.
É por isso tudo, além do calor intolerável (e pelos relatos nos links abaixo), que eu odeio o verão.
Leia também da série insetos (fatos reais!)
Pensamento para sexta-feira: Eu e os insetos (ou, motivos para ter medo de insetos)
A volta da vespa noturna
A personalidade das moscas
9 comentários:
"baratas são como espíritos que se materializam para perturbar as pessoas"
Texto perturbador!
Já se falou que, um dia, os humanos deixarão de existir e as baratas triunfarão sobre a terra. É preciso resistir.
hehe
Resistir, sempre!
Ai ai, baratas..
Já devo ter eliminado várias gerações de baratas. Mas o ser humano contribui para a proliferação das baratas, dos ratos, parece uma coisa do mal...as baratas estão aqui na Terra há milhões de anos. De qual mundo vêm as baratas? Às vezes penso que os seres que vivem na terra vêm de vários mundos. As baratas são de mundos sombrios, das trevas....Aqui é um bom lugar para elas, é quente. O único inseto que foge quando chega-se perto é a barata. Há exceções...as voadoras atacam.
Nesse verão já tive a experiência de acordar pela madruga com um desses insetos no meu pé... acordei sentindo suas patas percorrendo minhas pernas adentro, que horror. Chutei tudo que tinha ao meu redor, ela foi parar na janela...uma cena bem ridícula...era voadora...só com a luz do abajur, via aquele mostrengo na minha frente...peguei o chinelo e numa só....PÁ...liquidei a danada.
Muito bem, Alexandre, assim é que se faz. Como diz o Vitor, "é preciso resistir".
Agora, um dos problemas desse inimigo do sossego é que, mesmo que elas teoricamente fujam, como vc diz, a "barata tonta" é tonta porque ela começa a correr em qualquer direção e parece pensar que correndo assim ela foge, mas muitas vezes ela corre direto pra cima de vc, de quem ela deveria estar fugindo...
O Matador de Baratas ( O Filme )
Sim, mas seu instinto é fugir sem pensar, correr escapa da morte, mesmo que para cima da gente. Que bicho asqueroso. Mas é isso mesmo, barata tonta. Logo todas as baratas são tontas. Uma descoberta científica.
Refestelei meu traseiro - no passado farto - confortavelmente na cadeira para saborear cada letrinha de seu texto.
O Alê Maretti é, superlativamente dizendo, um cabra da peste, já que pegou o chinelo e numa só... PA... liquidou a danada (que lhe cabia neste latifúndio).
Edu, que as baratas em seu apê nos permitam mais episódios dessa saga.
Tania Lima
Me dá calafrios, Tania, mas vá lá... Pra alguma coisa essa merda de criatura, desculpe a expressão, há de servir! rss
A natureza é 'perfeita' até pra criar o horrendo. Tudo nesse bicho é feito na medida pra isso. É um animal expressionista. Parece que concentra todas as coisas repugnantes que assombram nosso inconsciente. Engraçado o "Metamorfose", do Kafka. Alguém me falou um dia que o bicho que se descreve no livro não é necessariamente uma barata, pois isso não fica claro na narrativa. Pode ser um besouro, por exemplo. Mas a maioria das pessoas (como eu), quando leem a obra, associam automaticamente o animal a uma barata, porque esse bicho é o que há de mais monstruoso que se possa imaginar. É um minimonstro que nos fascina como um pesadelo, anda em esgotos e move sua cabeça marrom provida de boca e dentes que mordem. Enfim, é um troço enriquecedor, desde que saibamos enfrentar nossos medos he he. Eu ainda não consegui.
"A natureza é 'perfeita' até pra criar o horrendo."
É verdade, esse inseto "move sua cabeça marrom provida de boca e dentes que mordem". Muito pertinente, mesmo, a lembrança de Metamorfose de Kafka. É impossível que o bicho descrito não seja uma barata! O livro começa assim:
"Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo do qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha."
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