Revi esses dias um filme que é preciso mesmo ver, no meu caso rever. Paradise Now, dirigido pelo palestino Hany Abu-Assad (2005).
É a sensível história dos
amigos de infância Khaled (Ali Suliman) e Said (interpretado por Kais Nashef). São
mecânicos e trabalham em uma oficina em Nablus, cidade localizada na
Cisjordânia, a cerca de 60 km de Jerusalém, com população estimada de 200 mil habitantes.
Sob a ocupação israelense, eles cresceram com os traumas de
viver numa “cidade que virou uma cadeia”, como resume a personagem Suha (protagonizada pela linda
atriz Lubna Azabal), uma jovem cosmopolita, filha de família palestina
tradicional, que nasceu na França e viveu no Marrocos, e que não resiste a
voltar às origens e a certa altura exclama: “Não sei o que estou fazendo aqui”.
A trama das vidas de Said e Khaled subitamente sofre
dramática e definitiva transformação: do cotidiano comum – até onde se pode,
sem ser cínico, chamar de “comum” a vida em um território militarmente sitiado
–, os dois rapazes são de repente alçados à condição de mártires palestinos, e
convocados pelas lideranças a uma missão suicida em que terão que representar mais
uma vez os papeis que lhe são reservados nessa terrível e interminável tragédia
de dois povos. Na narrativa do filme, fica claro que
eles fazem parte de uma lista, como soldados alistados à espera de serem recrutados ao
teatro da guerra, em seu caso uma guerra desigual.
É impressionante a transformação operada pelo diretor nos personagens Said e Khaled, como mostram as fotos do primeiro, antes e depois de ser recrutado para a missão.
É impressionante a transformação operada pelo diretor nos personagens Said e Khaled, como mostram as fotos do primeiro, antes e depois de ser recrutado para a missão.
Said, o mesmo personagem, antes e depois... |
Said é filho de um “colaborador”, ou seja, um palestino que se rendeu aos interesses israelenses, que entre nós chamamos “informantes”. Seu pai foi executado quando o jovem ativista era criança. Ao se dirigir ao líder que o recruta para a missão, Said justifica sua aceitação do destino, em uma fala marcante no filme:
“Os crimes da ocupação são incontáveis. Mas o pior de tudo
é explorar a debilidade das pessoas e convertê-las em colaboradores. Não só aniquilam
a resistência, como também arruínam as famílias, sua dignidade e nosso povo.
(Meu pai) era um homem bom, mas ficou frágil.”
Mas Paradise Now não propõe uma visão maniqueísta. A jovem
Suha, com a experiência de ter vivido em outros contextos, por quem o jovem
Said nutre uma paixão correspondida, mas impossível diante do destino histórico-fatalista
que ele próprio se impõe, representa no filme a percepção de que a violência de
um ataque suicida é não só inútil para a causa palestina como também a enfraquece
ainda mais.
Dito assim, pode parecer que o filme de Hany Abu-Assad é
baseado em um roteiro tolo e previsível. Mas não é assim. É um grande filme,
que não ganhou por acaso vários prêmios, como o Globo de Ouro de melhor filme
estrangeiro, o Anjo Azul do Festival de Berlim e um da Anistia Internacional. Foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2006. E também não foi por acaso que a indicação ao Oscar provocou protestos em Israel, por "humanizar" os suicidas muçulmanos denominados no Ocidente de "homens-bomba".
Paradise Now tem muitas virtudes estéticas: a construção da
trama mantém o suspense até o fim; apesar de ambientado em um cenário opressivo,
o filme não se rende à violência barata a que nos acostumamos a assistir sob o
rótulo de Hollywood, que um certo cinema brasileiro faz questão de reproduzir;
a fotografia, com a cidade de Nablus, milenar e moderna, ao fundo, é exuberante
e emocionante; a delicada construção dos personagens, as amizades, as relações
familiares, as cores usadas pelas mulheres (a jovem Suha ou a mãe de Said, a
impressionante atriz Hiam Abbass, nascida em 1960 em Nazareth, Israel, mesma cidade onde em 1961 nasceu o próprio diretor Abu-Assad). A beleza misturada à dor.
Uma associação inevitável: será por acaso que a cena inicial de Paradise Now remeta inequivocamente à cena de Eva (Eszter Balint) chegando a Nova York no filme Stranger than Paradise, de Jim Jarmusch, de 1984? Paradise Now, Stranger than Paradise. Não creio nesse acaso. Paraíso, paradise. Palestina, Nova York.
Kais Nashef (como Said) e Lubna Azabal (Suha) |
Uma associação inevitável: será por acaso que a cena inicial de Paradise Now remeta inequivocamente à cena de Eva (Eszter Balint) chegando a Nova York no filme Stranger than Paradise, de Jim Jarmusch, de 1984? Paradise Now, Stranger than Paradise. Não creio nesse acaso. Paraíso, paradise. Palestina, Nova York.
Tudo isso para dizer que Paradise Now é um filme que precisa
ser visto.
8 comentários:
Filmaço mesmo. Vc poderia me lembrar quais são as cenas iniciais dos 2 filmes?!
Na cena inicial de Stranger than Paradise (Jarmusch) vemos Eva (Eszter Balint) de costas para a câmera, parada, olhando em direção a uma pista de aeroporto, com as malas no chão, ao seu lado. Ela pega a mala, vira-se de frente para a câmera e sai caminhando;
a cena inicial de Paradise Now mostra Suha (Lubna Azabal) de frente para a câmera, parada, numa encruzilhada de estrada, com a mala na mão. Um veículo militar passa atrás dela. Corte para um enquadramento em que se vê uma barreira militar (a cena que os olhos da personagem veem). Suha então entra na cena caminhando dirigindo-se à barreira.
Como eu disse no post, você pode conferir o filme na íntegra. O link está lá.
A íntegra de Stranger than Paradise está aqui:
https://www.youtube.com/watch?v=Tq62BIu6w7I
A mim parece clara a referência feita pelo diretor Hany Abu-Assad ao filme de Jarmusch. Confira e veja o que acha.
Excelente o filme, dê fato.
Vi esse filme. Realmente muito bom!
Muito bom o filme. Do ponto de vista de dois homens-bomba, vemos que tal decisão é muito mais complexa do que jamais pensamos.
Envolve dramas e sentimentos pessoais e às vezes a decisão de ir em frente ou desistir passa muito mais por uma linha individual do que pelo aspecto religioso. O que os fez decidir foram questões políticas e pessoais. Alá foi o que menos contou... Interessante!
Gostei da frase "Ocupados, já estamos mortos." Também do contraste mortificante entre Nablus e Tel Aviv... É válido ressaltar que o mais decidido, a princípio, Khaled, desistiu (será executado?); já o menos convicto (Said) foi em frente por trazer em seu âmago a morte derrotista do pai e a sensação de, em vida, já sentir-se aprisionado e/ou morto.
Destaco também as cenas de grande suor que escorre de seus rostos e a boca seca, mostrando o grande e multifacetado conflito de tomar uma posição.
O filme todo é hesitante diante da certeza religiosa. Há vários questionamentos acerca de Deus/Alá e do Paraíso. Também com relação à atitude de optar por atentados, pondo em dúvida sua real validade. Uma película curta, mas intensa. Repleta de frases e cenas que todos ou quase todos já se viram como autores frente aos questinamentos acerca da vida, da morte e de uma divindade. Ultrapassa a questão Israel/Palestina e acerta em cheio a dor da existência humana.
É um filme muito denso, não é?
Muito bom teu comentário, Roseli.
As únicas observações que faço são:
- não, Khaled não foi executado!, graças a deus (hehe), pois ele é um irmão, o irmãozinho de Said. Mas, mais importante do que isso, Khaled não é um "colaborador".
- a questão de o filme ultrapassar a questão Israel/Palestina: acho que a causa palestina é tão, mas tão importante, que, embora eu concorde com vc nesse aspecto, é muito importante que o filme desmitifique a visão ocidental generalizadora e falsa que atribui todos os males do mundo aos muçulmanos...
Verdade. Importante contribuição para o ponto de vista palestino num mundo que prioriza a ótica dos poderosos.
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