quarta-feira, 2 de março de 2011

O governo Dilma e a Comissão da Verdade


Por Felipe Cabañas da Silva

Monumento Tortura Nunca Mais, em Recife (PE)
Ainda neste semestre o governo de Dilma Rousseff pretende articular a criação de uma Comissão da Verdade e Justiça para apurar os crimes da ditadura. A secretária de direitos humanos da Presidência, Maria do Rosário, tomou posse em janeiro já defendendo a instauração de tal comissão. Sem usar em nenhum momento o termo ditadura, a ministra afirmou em seu discurso de posse: “devemos dar seguimento ao processo de reconhecimento da responsabilidade do Estado por graves violações de direitos humanos com vistas à sua não repetição, com ênfase no período 1964-1985, de forma a caracterizar uma consistente virada de página sobre esse momento da história do país”.

Tocar nesse assunto no Brasil continua sendo tabu e quem mexe nele mexe em vespeiro. As reações à fala da ministra foram imediatas, e o general José Elito Siqueira, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência, deu a infeliz declaração de que desaparecidos políticos são um fato do qual o país não tem de se envergonhar, no que foi imediatamente repreendido pela presidente.

O Brasil é talvez o único país da América Latina a não enfrentar uma ampla apuração sobre os crimes de sua ditadura, e é certamente a democracia mais estável a não fazê-lo. A leniência do país é tão gritante que o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA pelo desaparecimento de 62 pessoas na repressão à Guerrilha do Araguaia entre 1972 e 1974. Por aqui, silêncio.

América Latina

Na Argentina, já em 1983/84 foi instaurada uma Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP), presidida pelo físico e escritor Ernesto Sabato, cuja investigação deu origem ao belíssimo livro Nunca Mais e abriu caminho para o julgamento dos crimes da ditadura argentina. Jorge Videla, que esteve no poder entre 1976 e 1981 e é por muitos apontado como um dos ditadores mais sanguinários da América Latina, foi recentemente condenado a prisão perpétua pela execução de 30 prisioneiros. Nesta semana, Videla começa a ser julgado pelo roubo e mudança de identidade de aproximadamente 500 bebês de presos políticos.

Chile, Uruguai, Peru, Equador, Paraguai e Bolívia já instauraram comissões nos moldes da que propõe o Projeto de Lei 7376/2010, do qual Lula se esquivou deixando o ninho de marimbondos no colo de Dilma Rousseff.  

Visões jurídicas


A discussão sobre a Lei de Anistia é espinhosa. Os militares defendem que a lei decreta “anistia bilateral”, anistiando também os agentes do regime. A lei é de 1979 e foi decretada por Figueiredo. Há o argumento de juristas segundo os quais a Constituição Federal de 1988 veda a anistia a crimes de tortura. Para a Advocacia Geral da União, a CF/1988 não pode retroagir a uma lei de 1979. De qualquer forma, isso deixa transparecer algo que para mim é da ordem da essência do direito: os textos legais não permitem uma leitura unilateral e as forças da sociedade em regime democrático (pelo qual muitos morreram nos porões da ditadura) têm condições de lançar questionamentos.

Gostaria também de discutir um argumento político que já ouvi mais de uma vez, de que a repressão na ditadura foi necessária para conter o “perigo de uma ditadura comunista iminente”. Falácia. A ditadura torturou e matou desde guerrilheiros comunistas até sociais-democratas moderados e não envolvidos diretamente com política. Intelectuais e artistas inofensivos foram parar nos porões dos militares pelo simples fato de parecerem suspeitos – a triste história de Vladimir Herzog é emblemática nesse sentido.

Querer equiparar os crimes de quem tinha o poder do Estado com os crimes dos opositores é um atentado à inteligência de quem ainda não conseguiu enterrar seus mortos. Espera-se que Dilma Rousseff, como uma ex-presa política torturada pelo regime, leve mais a sério este acerto de contas que o Brasil tem com seu passado. Comissão da Verdade já!

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