terça-feira, 23 de abril de 2013

O Deus da Carnificina, de Polanski, e a mediocridade pequeno-burguesa


"É preciso educação para substituir a violência pela lei"

do personagem Alan Cowan (Christoph Waltz)


Nova York. Um menino bate num amigo de bairro ou de escola, num parque ou playground, como acontece na infância de quase todo mundo. O fato desencadeia o enredo de Deus da Carnificina (Carnage), o filme mais recente de Roman Polanski (que estreou nos cinemas por aqui já faz um bom tempo, em junho do ano passado). Se você não gosta de sangue e o nome assusta, relaxe. Não tem nada a ver com sangue, e sim com risos, pois trata-se de uma comédia. Os pais do agredido, Penelope (Jodie Foster) e Michael (John C. Reilly), de repente recebem a visita dos pais do agressor, Nancy e Alan Cowan (Kate Winslet e Christoph Waltz).

Divulgação
Jodie Foster (esq.), John C. Reilly, Christoph Waltz e Kate Winslet  

A timidez, as boas maneiras, a cordialidade e uma certa insegurança comum marcam o encontro e a relação inicial dos dois casais, que conversam sobre o problema dos filhos, e o assunto começa derivar em outros temas. Lentamente, regados a um whisky 18 anos do anfitrião, os diálogos começam a resvalar para a ironia, depois para o sarcasmo, tornam-se ríspidos, e depois para a violência; não física, mas moral.

O pai do menino agressor é um homem de negócios (Christoph Waltz) que a cada dois minutos interrompe a conversa porque tem de atender o celular para  tratar de assuntos inadiáveis; sua esposa (Kate Winslet) é uma típica pequeno-burguesa, fútil e empinada; o outro casal é formado por um bonachão (John C. Reilly) e sua esposa politicamente correta (Jodie Foster). Curiosamente, entre os quatro atores, achei Jodie a menos bem colocada no filme, com uma atuação que pareceu em alguns momentos histérica demais (perdendo a sutileza que seria mais convincente), enquanto Christoph Waltz, que faz o pai do menino agressor (o cruel coronel Hans Landa em Bastardos Inglórios de Tarantino), é o ponto alto entre os quatro – é o personagem que introduz o tema do filme, ao defender, contra a seriedade moral da mãe Penelope, e para o escândalo desta, o arquétipo sanguinário do ser humano, espécie na qual o mais forte e violento prevalece.

É claro que, a uma certa altura, o espírito do álcool toma posse de todos, e o diálogo torna-se um caos entre bêbados que desavisadamente expõem suas neuroses, suas frustrações, seus medos e suas fraquezas. Agridem-se, sutil ou expressamente, fazem as pazes, xingam-se de novo, e o clima dentro do apartamento se torna absurdo, pois nem uns vão embora nem os outros os expulsam.

Não sei se é intencional ou não (precisaria perguntar ao próprio Polanski), mas parece evidente que a situação bizarra que surge a partir de um evento banal do cotidiano e não se resolve, um impasse sem sentido e absurdo, é uma referência clara a Luis Buñuel, embora em Buñuel o absurdo seja mais misterioso e inexplicável, ou, para usar a palavra certa, surrealista.

Em Deus da Carnificina, o absurdo é mundano, direto e fútil, pois decorre da própria neurose e dos valores medíocres da classe média, com seus celulares, seus vasos de flores, seus livros de arte e seus estojos de maquiagem. Não se pode, claro, perder de vista que um dos principais alvos da metralhadora de Buñuel é a burguesia, mas não só: a riqueza poética que transforma seus filmes em alegorias não existe no filme de Polanski, onde a crítica aos valores pequeno-burgueses nova-iorquinos é explícita.

Seja como for, como sempre, vale a pena “perder” 80 minutos para ver a comédia de Polanski. A película, baseada na peça teatral Le Dieu du Carnage, de Yasmina Reza, não é uma obra-prima e é inferior ao excelente The Ghost Writer. Mas é Polanski.

Leia também sobre Roman Polanski:

The Ghost Writer, um tributo a Hitchcock

A vida tormentosa de Roman Polanski

2 comentários:

Alexandre disse...

Durante o comentário desse filme, fui-me arremeter diretamente ao filme do próprio Buñel, Anjo exterminador. No comentário, para quem viu esse filme, seria bem difícil não lembrar dessa fita. Certamente Polanski deu uma chupada, ou mesmo "é uma referência clara a Luis Buñuel", de qualquer maneira usou os ingredientes de A. Exterminador. Mas como sendo uma comédia de Polanski, (nunca vi comédia desse cineasta) vale a pena ver. Vale a dica.

Emerson Lopes disse...

Edu, em minha opinião, o seu post é muito melhor do que o filme. O Deus... me parece uma mistura rala de O Anjo exterminador com Quem tem medo de Virgínia Woolf. Abrax saudosos.